A tv na outra quadra estava alguns segundos adiantada. Passei a olhar pra quadra adiante e o pessoal aumentava a euforia. Eu fazia um rápido raciocínio em fração de segundo se era uma construção de chance ou a concretização em tento. Quando voou cerveja tal qual só havia visto em imagens pela Eurocopa, foi a inevitável confirmação, porque somente um gol em uma final justificaria tal desperdício.
_____________________________________________________________
A cidade não estava exatamente pintada com as três cores, mas os arredores da Universidade Católica demonstravam que aquela noite seria de entusiasmo. As camisas se multiplicaram, geralmente em pequenos grupos, que logo seriam uma só sintonia. Fui um dos primeiros nos entornos e o primeiro cliente de fato em um pequeno bar, com duas mesas dentro e mais uma fora. Puxei o primeiro litro na espera de meu amigo xavante.
Ele apareceu de camisa branca e logo o jogo já estaria com aquecimento dos atletas e transmissão em definitivo. Outros gremistas se juntaram pela volta, ocuparam as cadeiras e alguns de pé, de olho na televisão. O bar ao lado cobrava inclusive entrada de open bar, em um preço de 25 reais. Ficamos sem a opção de pequena festa, porque o foco era somente o jogo. Com o apito inicial, notamos que a televisão da quadra seguinte estava adiantada. Os primeiros gritos foram de "UUUUUUUUUUUHH", para dois arremates distantes. Como se participássemos de um programa de auditório, espantávamos o nervosismo e os ataques rivais com o tremular das mãos, pedindo encarecidamente o afastamento da bola das proximidades da meta defendida por Marcelo Grohe. A cada desarme, aplausos e gritos de incentivo. Foram muitos. Desarmes e gritos de incentivo.
Não tardou para o entusiasmo se alastrar, como se no asfalto e calçada sob nossos pés houvesse uma conexão de energia, fluente, elétrica e contagiante. Os gritos aumentaram de tom e chegaram ao êxtase. Busquei no acelerar do raciocínio se era mais uma chance boa de gol ou a confirmação da bola na rede. A cerveja voou sobre as cabeças na quadra seguinte e não demorou para os gritos serem arrancados também frente ao nosso televisor. Maicon acertou passe preciso para entrada de gala de Pedro Rocha. Ele fintou o estabanado marcador Gabriel, que ainda derrapou para enfim visualizar a conclusão da primeira obra de arte: pincelada de Pedro Rocha ainda com desvio nos dedos do inconsolado Victor: 1 a 0 ao Grêmio Porto-Alegrense em pleno estádio do Mineirão, em Belo Horizonte.
Era o Grêmio, era o Grêmio, sim senhor, de volta a uma final de Copa do Brasil, com todo o peso do percurso de anos anteriores. Das primeiras conquistas em década valiosa ao peso do jejum recente, de mais de década. A volta a uma final nacional, a possibilidade do penta e o acendimento dos sentimentos com o placar favorável fora. E era bom o jogo. Pedro Rocha trouxe mais fogo que o antigo diabo Paulo Nunes e perdeu duas chances claras na etapa inicial. Na segunda delas, poderia ter rolado para o lado e o segundo gol seria certo. Ainda não era a vez. Apreensivos no impaciente intervalo, somente um torcedor do bar, o mesmo que derrubou a cadeira algumas vezes na etapa complementar, relembrou a existência e alguma relevância do Internacional e sua briga contra o rebaixamento. Meu desejo era rechaçar qualquer assunto semelhante, pois ali jogava o Grêmio e o Grêmio estava de volta. Sem modificações. Douglas, que tomara uma pancada nos primeiros giros do cronômetro, aguentou firme.
Logo no arrancar do segundo tempo, o replay do primeiro gol pairou à frente de nossos olhos e parecia mais desenhado, mais rebuscado, mais belo e mais decisivo, mais expansivo e intimidador das goelas, sobretudo. Pedro Rocha. Isto mesmo, ele de novo, o gurizão, o jovem de 22 anos, com aparência até de menos, de espinha na testa, de boné aba reta, de matrícula na faculdade de Educação Física em Porto Alegre. Ele, senhoras e senhores, ele colocava seu nome para a história de outra capital brasileira, Belo Horizonte. Tão belo o horizonte de fintas que proporcionou. Acreditou, cavaleiro andante, abridor dos mares, solitário e não intimidado. Todos só puderam olhar o contorno do carnaval de suas chuteiras, reluzentes para ficar cara a cara novamente com Victor e concluir ainda melhor que no primeiro gol. Tirou do alcance, Victor só roçou foi a grama e logo já se levantou para reclamar de seus falhos guardiões. Grêmio 2 a 0 em dois tentos de Pedro Rocha. Espetacular resultado fora de casa, de maneira a vir ser inédita na história da Copa do Brasil de Futebol Masculino, disputada desde a edição ganha pelo tricolor em 1989.
O Grêmio preocupou o semblante, calou vozes, das milhares, mais de 50 mil vozes no atônito Mineirão. Assim, o Grêmio repetia a façanha da semifinal, quando abrira 2 a 0 sobre o Cruzeiro no mesmo estádio, em público de quantidade muito semelhante e coração rival. Os atleticanos buscaram o tímido "Eu Acredito" e ele ficou mais forte. Ficou na expulsão do mesmo Pedro Rocha. O garoto estava para sentir as câimbras, tão cruéis com o herói da noite. Ele esticou a perna como um elástico para capturar dinheiro e capturou a perna adversária, levada ao gramado. Falta na lateral do campo, próxima à área. Ele já tinha o cartão amarelo, que eu desconhecia o fato, pois não vi que havia recebido por tirar a camisa na comemoração do segundo gol. Ele recebeu a segunda tarjeta e, com muitos protestos dos companheiros, sobretudo Maicon e o participativo Douglas, Pedro Rocha acabou expulso. O futebol antes amolecado das pernas alegres e do sorriso estampado, deu lugar a um semblante fechado, às lágrimas que logo brotaram. Talvez tenham molhado à CHAMATIVA CAMISA VERDE de Renato Portaluppi na saída e no cumprimento com abraço ao treinador, que acreditou nele. O choro seguiu no vestiário, pela branca camisa do tricolor, amuleto da sorte na caminhada invicta fora de casa. O cinegrafista o seguiu como se tivesse intimidade e o fosse consolar, mas apenas expôs a imagem para milhões de televisores brasileiros e mundo afora.
Pedro Rocha expulso e Grêmio com um jogador a menos. Contra um Galo sempre forte e buscando novamente ser vingador. Buscando organização e a podendo reencontrar. Com um homem a mais, foi-se ao ataque, pediu pênalti e havia nada. Seguiram-se minutos apreensivos e sufocantes. Eis que o ex-gremista Fábio Santos avança cabeçudo pela banda esquerda do campo e comete uma infração. Era falta na certa, mas o árbitro marca escanteio aos atleticanos. Após os nossos protestos, o silêncio ecoa na rua pelotense Gonçalves Chaves e o Galo é quem canta em Minas Gerais. Gol dos alvinegros em escanteio da esquerda e finalização precisa e quase acrobática de Gabriel, o do escorregão no primeiro gol da noite. Desconto do Galo e 2 a 1 ainda para os gremistas, mais acoados pela desvantagem numérica de combatentes na frente disputada.
Quando já pedíamos o final do jogo, uma escapada passados os 40 e tantos minutos culminou no arremate derradeiro. Pedro Geromel manteve o protagonismo dos Pedros na noite, roubou a bola de Robinho e avançou, puxou a tabela e avançou, trotou com passadas largas e, assim, avançou. Foi sem medo, com coragem, com bravura e personalidade. Com seus belos cabelos encantadores e sedutores de pessoas mais ainda interessadas. Avançou como se a bola fosse sua companheira de estrada, como jóquei e cavalo, como hábil piloto no rali da lateral direita. Em suas passadas espaçadas, conseguiu levantar o olhar e ter certeza de que carimbaria um presente indispensável. Mandou o cartão de natal com assinatura para Everton e o Cebolinha, 12º jogador na caminhada da Copa do Brasil, tornou-se novamente o holofote, chegou rasante, ele e a bola, se cumprimentaram rápido em um chute de bate-pronto e selou o presente aos gremistas com o check-in nas redes do Mineirão. Neste momento, abracei muitos desconhecidos, mais do que abracei conhecidos no recente ano. Alegria, alegria a mi corazón e Grêmio 3 a 1 na vantagem agregada neste jogo maluco. Me dei conta que estava com três metros de altura e parei para elucidar que um desconhecido havia me erguido sobre seus ombros. Não hesitei em gritar para afastar as mais diversas bruxarias que teimavam em nos cercar e pareciam trancafiadas novamente aos porões.
Pedro Rocha, Pedro Rocha e Everton sacudiram as malhas para abrir considerável parcela para trocar a Tele-Sena pela taça. O Grêmio novamente sobrou e sobrevoou o Mineirão. Fez barba, cabelo e bigode, ficou mais charmoso do que Douglas e dividindo os méritos do encaixe da defesa ao ataque. Dos volantes de passes precisos aos atacantes velozes e ao zagueiro que puxou desabalada carreira pelo lado direito para a última das tele-entregas da noite especial. Everton, o Cebolinha terminou com os temperos em uma salada aplicada do Grêmio, com todos os ingredientes e modo de preparo para terminar no gosto glorioso da taça.
Falta, falta o jogo de volta, mas como foi gostoso o sabor da noite. Da inédita chance de um penta na Copa do Brasil. Da inédita abertura de vitória fora de casa ao primeiro visitante. Amplos 3 a 1, mas não há gol qualificado e não se pode sofrer derrota por dois tentos. É preciso muita atenção para, só após a meia-noite que separa quarta de quinta-feira, novembro de dezembro, poder, com permissão, concessão e bençãos dos deuses do futebol, mais humilde do que em outras chegadas, ecoar a mitificação dos cânticos. Poder agradecer por ter passado a tortuosa e longa estrada e fila; e implorar que não acabe o momento máximo para o torcedor gremista, sabendo que o mesmo passar do tempo que nos agoniava, agora pode também nos brindar.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
-
O filme norueguês "Doente de mim mesma" (2022, direção de Kristoffer Borgli) é comparável ao de maior sucesso recente, A Substânci...
-
Todas as linhas estão Escrevendo saudades em vão Tô cansado de esperar Que você recarregue Cansado de esperar Você Meu car Reggae
-
Sou um poço de ironia O horizonte é um monte Um monte de geografia O horizonte que aponte Um monte de biologia Apesar daquela tátic...
-
Te procurei em todos nasceres do sol Você fugiu em todos nasceres do sol Talvez você nem desconfie Se não um sol ao menos meu farol Senti ...
-
Mediante as mudanças em políticas de inclusão na Europa e nos Estados Unidos durante os anos 1990, o autor jamaicano Stuart Hall propõe ques...
-
Costumo considerar que sou agraciado ou desgraçado por mais coincidências do que a maioria das pessoas. Mas também sou mais observador, é be...
-
Preguiça de começar o texto. Quem nunca? Quem sempre? Quem de vez em quando? Sim, sim, de vez em quando. Vida dividida em blocos. Hora da re...
-
Acompanhando uma coletânea com todos os filmes do diretor iraniano 🇮🇷 Abbas Kiarostami, as conclusões referentes aqui se devem até o 7⁰ fi...
-
Por mais que eu me distraia, alguma hora tenho o inevitável encontro comigo mesmo.
-
Um tapa de mão aberta Na cara desse sistema O médico obstetra Deu luz a mais um problema É sempre a estrada reta Deles que eles impõem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário