Realizada no
Mercado Central de Pelotas,
a Feira da Cara
Preta reúne expositores
com cultura afro
da região sul do estado
A Feira da Cara Preta
chegou, em setembro de 2014, à sua 3ª edição. A realização é uma oportunidade
de manifestação cultural para artistas e expositores da zona sul do Rio Grande
do Sul. Em Pelotas, a cultura de raízes afro é bastante presente e faz parte do
desenvolvimento do município desde seus princípios. Porém, segundo um dos organizadores,
Jonas Fernando, “os negros ainda não conseguem se ver como
parte do modelo de sociedade em que vivem”.
A ideia do evento é
exatamente o que Jonas propõe: inserção. Buscar espaço em um mundo onde a arte
e o lazer caminham de maneira segmentada. Por isso, a Feira da Cara Preta, que
ocorreu entre 19 e 22 de setembro no Mercado Central de Pelotas, reuniu cerca
de 40 trabalhadores, entre artistas, organizadores e vendedores de
artigos de moda e gastronomia. A tradição surgia de diversas formas aos
visitantes. Culinária e vestimentas típicas, pinturas, esculturas, literatura e
dança, além de rodas para debater a história e o espaço do negro na sociedade.
O organizador Jonas
Fernando é artista plástico, ilustrador e quadrinista. Ele comenta mais sobre o
surgimento da Feira da Cara Preta. “A feira foi idealizada por mim. O projeto,
o corpo surgiu dentro da minha casa, a partir do meu fazer artístico e das
minhas necessidades, comum a tantos outros artistas. A necessidade de dar
fruição ao trabalho.” Jonas conta que começou a notar as semelhanças entre quem
faz o que é conhecido por arte e outros trabalhadores, como marceneiros e
serralheiros. Segundo ele, o marceneiro é um artista quando desenvolve objetos,
brinquedos. O serralheiro igualmente, em seus feitos elaboradamente criativos.
Através de suas
frustrações artísticas, Jonas diz ter recebido um estalo, para enxergar a arte
sob um novo ponto de vista, algo mais macro. “Comecei a ajudar os outros a
fazerem seus projetos. A gente criou um grupo de artistas plásticos, com Paulo
Correa, Zé Garcia... Tudo para impulsionar a ideia.”
Sobre a forma como é
vista a arte na sociedade, o idealizador a questiona. “Às vezes a arte é institucional
demais, acadêmica demais e acaba havendo pouco espaço para outros segmentos.
Queremos mostrar com a feira que a arte está em toda parte.”
Com esse pensamento
de introduzir o meio artístico pouco notável aos padrões, a feira teve sua
edição inaugural em maio de 2013, em Pelotas. A segunda vez ocorreu na cidade
vizinha, Rio Grande, município que é reduto também de importantes manifestações
da cultura afro-descendente. De volta a Pelotas, a Feira da Cara Preta bateu em
um conflito de datas. Em meio à semana em que a maior parte do Rio Grande do
Sul comemora a semana Farroupilha, o movimento negro apresenta as controvérsias
do heroísmo tratado sobre o tema. O 20 de setembro indica ideais de liberdade
ao povo gaúcho, ao mesmo tempo em que sabe-se que seu desfecho aconteceu com o
massacre de Porongos. As lembranças triunfantes da revolução parecem deixar de
lado a participação efetiva da população negra, que guerreou, com sofrimento
antes, durante e depois do fato histórico, já que o período do século XIX era
de intensa escravidão.
Diferente do
que é proposto nos desfiles da Revolução Farroupilha, a valorização
da cultura africana é estampada em exposições e oficinas na Feira da
Cara Preta. O diálogo aberto dos participantes mostra que a melhor forma de
combater preconceitos é dar espaço ao assunto, derrubando barreiras.
Um dos responsáveis
pela mostra cultural afro é o estudante de teatro da Universidade Federal de
Pelotas (UFPel), Regis Caetano, que preparou uma encenação com a ajuda de
voluntários e visitantes da feira. O acadêmico explica a oportunidade recebida
e a história dos orixás em sua apresentação.
“Estou no quarto
semestre do curso e já faço teatro muito antes do ingresso na UFPel. O teatro
funciona como uma ferramenta de mudança social, não só de quem faz o teatro,
como do espectador. Aproveitei o convite do Jonas, achei interessante e estou
com essa oficina.” A apresentação de Regis foi sobre os orixás e se mostrou como
maneira de viabilizar esse conhecimento de crença, tão presente no social, mas
pouco divulgado. “A peça é sobre a criação do mundo, segundo os orixás.
Olodumaré é a grande divindade e ele ordena os orixás a criarem os homens. Aí
conta como Oduduá veio a ser o criador do mundo e completar a tarefa do
Oxalufá, que não conseguia fazer os homens com cor, ou seja, não conseguia
criar os negros. Então a temática da oficina é basicamente essa história”,
completa o estudante de teatro.
Quem também defende as
virtudes da Feira da Cara Preta é a jornalista Ediane Oliveira (25), sócia
proprietária da Maria Bonita Comunicação. Ela enfatiza que Pelotas é uma cidade
com raízes negras fortalecidas. Quando se fala em Princesa do Sul, é
praticamente uma princesa negra, com uma periferia cheia de produtos culturais,
tais como samba, hip hop e outras produções artísticas. Infelizmente, conta Ediane,
a elite pelotense é extremamente aristocrata e conservadora e a divisão entre
lado A e lado B, na cultura, é bastante visível. O lado B é mostrado na Feira
da Cara Preta. A jornalista conclui que esse lado B deveria ser cada vez mais visto
como A, a partir do entendimento de que Pelotas foi construída pela mão de obra
escrava.
Sobre seu
envolvimento nesta 3ª edição, Ediane diz: “A minha participação neste ano se resumiu na apresentação da abertura
da feira. Fiz uma fala de boas vindas a todos, falei do objetivo e da
importância de ocupar um espaço publico com a produção e o incentivo da
produção feita por negros na cidade. Destaco a participação de mestres griôs
como a Dona Sirlei, da produção artesanal e culinária, e da diversidade que o
povo negro tem tido na nossa cidade, além da forte produção cultural, como o
hip hop. O movimento é um dos nossos maiores tesouros sócio-culturais na região.”
Ediane acredita que
o evento abre espaço para o questionamento da data farroupilha, tão lembrada no
Rio Grande do Sul. Ela pergunta: “Qual o legado de uma revolução em que se
afirma que povo sem virtude tem que ser escravizado?”. Segundo a jornalista, a
revolução gaúcha foi totalmente desigual e não respeitou as diferenças de um
estado mestiço, quando em muitos momentos bloqueou o professar da negritude e negou
a contribuição dos negros. “Acho que o maior destaque da Feira da Cara Preta
foi o contraponto a esse estereótipo de um Rio Grande do Sul arcaico e
conservador”, finaliza a jovem.
A parceria para
ocorrer a feira ocorreu com a Biblioteca Pública Municipal e o Sebrae, que
auxiliou na formalização dos negócios oferecidos no Mercado Central. O Sebrae
abordou a importância da contribuição dos trabalhadores com o INSS e a
segurança para a fruição dos expositores e artistas.
Jonas Fernando
destaca como os negócios podem ser impulsionados através da feira. “Ano passado
havia uma moça que fazia penteados durante o evento. Ela tinha o banner dela, o
seu pequeno salão e desenvolvia a técnica em visitantes. Após a Feira da Cara
Preta, a produção dela aumentou em 40%. Isso reforça a qualificação do trabalho,
o aumento da clientela. Fica evidente o quanto a feira é uma vitrine. E é muito
importante estar formalizado. Se tu não estiver formalizado, tu deixas de
conseguir material mais barato de fábrica, tu perdes convites de trabalhos.”
Mais do que em
números, a oportunidade da exposição para os mais diversos produtores é notada
em sorrisos. O abraço à causa, reconhecido e feito também pela secretaria
municipal de cultura de Pelotas, que, segundo Jonas, passa a enxergar melhor as
culturas populares, abrindo portas para outros eventos. Por exemplo, a possibilidade
de alugar ônibus para buscar pessoas nas periferias e quilombos e conseguir com
que elas tenham acesso à arte e conhecimento em geral.
Jonas
Fernando encerra confiante no futuro da Feira da Cara Preta. “Esperamos o
crescimento do evento para a próxima edição. Após duas edições iniciais no
interior da Festa da Melancia no Capão do Leão, tivemos a primeira oficial em
Pelotas, a segunda em Rio Grande e esta 3ª, já bem maior, com mais público.” A
Feira da Cara Preta, portanto, é isso. É uma forma de acolher produtores e de
democratizar a cultura.
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