10/03/2023

Batom das noites

Quando você limpa o batom da boca, me arrebata uma sensação de ânsia, de excitação, de pólvora, de perspectiva, de expectativa. Porque sei que vamos beijar-nos. E digo que a vontade permanece a mesma da primeira vez. Na verdade ela é ampliada, porque agora já sei como é bom, e tenho a confiança dilatada de saber que nos queremos. Você limpa o batom silenciosamente no banheiro, sem eu saber. Eu, tonto, não percebo ao voltar. Posso pôr a culpa na luz que você tanto abomina por mostrar-nos. Ou então você deixa mais claro que, sim, vamos beijar-nos e manda a senha ao perguntar se o batom saiu todo ou permanece. E um pouco permanece, percebo em seu lábio superior. Mas estou de acordo que permaneça. Quero ser marcado. Quero você em mim. Quero trocar carícias e microrganismos. Quero ser colonizado. Quero que me imponha sua língua. Quero licença para essas barbaridades. Quero atingir os lábios que decoro formato. Quero sentir-me em casa e repousado. E quero a vertigem da primeira vez. Ampliada porque já sei o quanto é bom. E confiante, porque faço o teste sabendo da aprovação.

Espero por esse momento a cada noite. Sempre iniciamos contidos. Nem na bochecha nos tocamos. Somos discretos, não gritamos. Eu após umas cervejas grito. Faço bobagens porque só sei fazê-las. Nos momentos mais a sério, descontraio. Aprendo a meu modo que a vida é assim e tão inútil é fingir que não, que tudo é sério. Mas tão séria são nossas missões de cruzada e reconquista. Imposição permissiva. Termos de mau gosto. Mas eu gosto, sussurraria. 

Suas roupas pretas que contrastam. Seu batom escuro que marcou algum papel na retirada, no fim da missão, na fronteira de volta às cores naturais disfarçadas em iluminação (ou falta dela) noturna. Seus resquícios de batom que me marcam e carimbam mais uma noite nossa, com bênçãos invisíveis após anos de rezas infernais. Lamento os gritos ao redor, a música que não combina, a fila do banheiro e ele em si. Lamento o preço da cerveja que nos desagua e lubrifica. O engov que a idade patrocina e entrega, a disposição que prefere as cadeiras à pista. Comemoro a combinação ajeitada para lá ou para cá. Lamento que ajuste não seja uma palavra que nos soe bem. Mas ajeito para que ela não seja problema.

Me encantam expressões faciais com as quais me divertes. Seus olhos de mulher que promete algo entre o fim precoce e a idade idosa. Seu sorriso que me rejuvenesce, me batiza e me acompanha. Suas mãos cuja pele eu deslizo aos braços. Seu nariz que me diverte em bonito formato. Seus olhos, volto a eles, grandes e profundos. Que mundo escondem e que mundo ainda veem? E o que ainda vem? A alegria com a qual sempre te vejo. Cercania que abre alas, lá está meu desejo. Sua pele alva, meu alvo, saliva que me salva. Algo se repete, algo novo fica. Me invita novas linhas. Novas noites de um batom que antes de mim te encontra. Azar dele porque a ele o limite é a boca. Mais bela, além do que mesmo de longe chamamos ela, é sua alma. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário