O fim do verão se aproxima. Os salva-vidas já não repõem as bandeiras com as condições do mar. Aprendi eu mesmo a diferenciar o estado para bandeira vermelha ou para amarela. Considero que anda bem mais para vermelha. Mas hoje o mar estava quente. Costumo caminhar com os pés e às vezes as panturrilhas para dentro d'água. E o mar subiu bastante nos últimos dias. Não ameaça as dunas, mas cobre a areia, que fica com uma cor mais morena e com aspecto mais mole a cada pegada que lhe impomos.
A praia já não era das mais cheias, agora convive com poucas pessoas. Gosto de caminhar assim, com a extensão de areia para mim, com raros guarda-sóis, raros transeuntes que se apresentam. Acho melhor dessa forma, sem a possível obrigação repentina de cumprimentar alguém que conheço ou deveria conhecer, talvez algum vizinho da mesma quadra, porque em cidades pequenas as pessoas são acolhedoras e se conhecem. Caminho com menor dúvida dessa necessidade com o rosto parcialmente exposto por detrás de meus óculos escuros.
Observo a sucessão de ondas marítimas, hoje bastante envolvedoras, uma atrás da outra, elas mal esperando a respectiva vez de desaguar a espuma esbranquiçada. Direciono o olhar para o outro lado, com as dunas ora mais altas, ora mais baixas, obstruindo a visão das casas ou dos raros prédios, ou ora os permitindo uma visão mais completa e panorâmica. Observo as manchas que a água insiste em manter sobre as areias. Lagoinhas formadas que só serão desmanchadas quando o mar novamente avançar à noite. Permanecerão ali, sem passar do líquido para o gasoso na atmosfera, sem evaporar. Pequenas reservas de água salgada nos caminhos que encontram-se entre a imensidão do mar e as dunas, naturais barreiras, retenções de sua força.
Essas poças formadas, as lagoinhas, elas proporcionaram um aspecto de abandono para a cidade que se desenhava tímida por trás das dunas. Era como se alguém não tivesse feito o trabalho de recolhimento daquela água. Besteira, ilusão criada minha porque o processo é todo comandado pela natureza. Agora pela natureza, mas sem intervenção humana onde costumava haver é o crescimento do mato na descida da guarita dos salva-vidas. A grama cresce mais sem ser pisoteada pelos banhistas que subiam e desciam a estradinha. O mato avança e cobre as dunas, sem adversário na ação humana. Isto é recém março. Como estará o trabalho de poda em maio ou junho? O aspecto sombrio da cidade mais esverdeada de mato crescendo, de água salgada parada sobre as areias, de menos fluxo de humanos. Um paraíso turbilhante entre radiante ou esquecido. Entre maravilhoso e assustador.
Caminhei a passos firmes e determinados, para avançar alguma etapa em minha recuperação de saúde, para mostrar que é possível ou para simplesmente desopilar mais um pouco. Tinha quase como promessa a chegada à próxima praia, um bairro bem mais residencial do que o meu. E notei que as pessoas para lá são mais praieiras. Aproveitaram o dia nada nublado, perfeito de sol para abrirem guarda-sóis, reunirem a família e porem as crianças a brincar.
Um menino aguarda que sua irmã chute a bola. Ela ameaça duas vezes, finge que vai chutar, mas erra de propósito e recomeça a corrida lá de trás novamente em direção à bola. O menino está ansioso, não aguenta mais a demora da irmã. Na terceira vez ela chuta, bastante fraco, é verdade, avisa para mãe que já jogou, já jogou, e corre em direção ao mar. O menino espera a bola vagarosamente descer a pequena rampa de areia e chegar para seu domínio. Ele a envolve, quica e faz embaixadinhas, demonstra bom controle. Talvez sua mãe o obrigue a brincar com a irmã mais nova. É possível. Algumas mulheres e alguns homens dominam os raios solares em suas peles expostas sobre as areias. Noto que aqui os homens também gostam de tomar banho de sol e há nenhum problema nisto. Apenas que mais para o Extremo Sul deste vasto Brasil considerava eu que essa atividade era mais feminina. Podem ser novos tempos também, porque andei ausente das praias pelos últimos anos, principalmente pela vinda da surpreendente pandemia.
Digo que as pessoas do outro bairro são mais praieiras porque demonstraram boa concentração de interessados pelo desfrutar do dia nas areias, mas é somente na baixadinha daquele pequeno conjunto de ruas. Ruas que serviam para boa prática de um outro esporte: o skate. Vi alguns meninos andarem assim em outras expedições que fiz. Me refiro a esse como o 'outro' esporte, porque o primeiro nessas condições de praia seria o surf. Noto que com o avançar da retirada do verão, as ondas parecem mais propícias aos surfistas, ou ao menos assim eu considero. A praia catarinense começa a apropriar-se melhor do apelido de capital do surf, embora acho que este rótulo no desempate pertença à Garopaba.
Nenhuma nuvem interrompeu meu contato com o sol. Tomei cuidado para não me cansar em demasiado, porque ainda me recupero das maiores fraquezas, do meu naufrágio pessoal. Levei comigo além das chaves do apartamento, no bolso oposto uma garrafa d'água, que desfrutei já no caminho de volta. A caminhada foi muito positiva para o meu bem estar. Passei sim por alguns pescadores, como de costume, mais idosos do que jovens, alguns acenares de cabeça, mas nenhum boa tarde arrancado de minhas cordas vocais. Algumas pessoas realizam também a atividade física, algumas de tênis pela altura maior das areias, eu no patamar mais baixo da suposta rampa que afirmei sobre a trajetória da bola do menino. Eu molhando os pés e retardando meus movimentos quando este me alcançava até altura maior das pernas. Os passos ficam mais vagarosos e tenho de cuidar para a água que levanto com os pés não molhar as chaves, com dispositivo eletrônico, dentro de meu próprio bolso.
Me surpreendeu a temperatura elevada da água, porque nos últimos dias até moletom eu tive de usar pelas noites. Tomaria um banho, sem dúvida alguma. Durante a caminhada, identifico alguns pontos de referência. Os prédios os quais minha mãe afirma que um apartamento deles pertence a um corretor imobiliário que os ajudou nessa mudança de moradia. Antes desses prédios, o topo do morro mais alto, com uma antena de sinal que com certeza não pertence à minha infrutífera operadora, sem sinal na praia. Antes do topo do morro, uma simples arvorezinha, onde quase sempre há algum morador que organiza seus pertences, cadeira de praia, toalha, roupas, à sombra da mesma. Antes disso tudo o hotel maior, que dispõe cadeiras e espreguiçadeiras brancas raramente ocupadas pelos seus cada vez mais escassos hóspedes. Antes disso o restaurante maior que fica encravado entre as dunas, onde não se deve poder mais construir. Antes disso um pequeno centro de eventos para apresentações musicais, alguma prática esportiva, como o vôlei de praia ou o frescobol, que eles gostam muito. E antes disso a guarita de salva-vidas, onde costumo subir e descer pela praia, ficando bem próxima ao nosso prédio esverdeado.
Deixei que minha mente divagasse por essa caminhada, uma das últimas que farei nesse verão, seja pelo fim cronológico da estação, seja pelo fim de minha estada nessas terras, embora por enquanto. Voltarei em outro momento? Não sei quando nem por quanto tempo. Gostei bastante dessa cidade que eu consideraria uma cidade de brinquedo, nomenclatura que talvez eu melhor desenvolva em outro texto. De brinquedo por suas dimensões reduzidas, por sua organização bem plausível, por suas acomodações até eficientes e aconchegantes. Uma cidade planejada como um brinquedo ou algo muito sério... uma estrutura de maquete escolar ou universitária sobre uma planície de isopores.
Lembrei do que já passamos, do que estamos passando, mesmo longe, e do que ainda iremos passar. Conectei-me a esse fim de verão, a esse fim de tarde antes do meu exercício diário da escrita jornalística - ou algo próximo a isso - com a certeza de que o tempo passa. Se as coisas vão melhorar, é uma grande dúvida. Tive a certeza do respaldo de ter sido uma boa tarde. Torço para que mais gente consiga atingir esse objetivo. Não sei quantas vezes mais irei atingir, por minhas condições clínicas (dramático) ou simplesmente porque a vida nos surpreende em eliminações inesperadas. Quantos irão antes de mim mesmo que meu quadro clínico piore? Sem dúvida muitos, porque não cessam as guerras na Ucrânia, no Afeganistão ou na Síria, ou na Palestina, ou os surtos de Covid-19 que voltam a ameaçar a China, a Coréia do Sul, setores da Europa e jamais abandonou o Brasil, embora a revogação do uso de máscaras.
E é sem máscara (ou com alguma subjetiva?) que desfilo esses passos com no rosto nem um semblante emburrado nem um sorriso forçado, mas uma expressão até satisfatória. Satisfeito pela volta que dei à tarde, por ter cumprido a promessa feita a mim mesmo de atingir até a outra praia de distância, pela superação hoje de meus múltiplos problemas médicos, pela conclusão inconclusa de mais um verão, de estar morando na praia, embora enfrentando essas adversidades surpreendentemente advindas em meu corpo. Chego ao fim da praia e retorno, chego ao fim do verão e quero mais verões, chego ao fim de um bom dia e desejo mais alguns.
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