12/01/2022

O Esmo Nunca é o Mesmo

Estava pelas ruas escuras de nossa noite. Identifiquei uma das praças centrais, embora ela estivesse mais reta do que qualquer lembrança. As árvores passavam total aspecto de escuridão e sombreamento. Para tentar me situar no meio daquele tabuleiro, contornei a praça em busca de uma direção. Completei o perímetro ainda perdido. Saí para o lado que considerei conveniente, com o coração ofegante de quem criou alguma expectativa, nem que fosse a preparação para enfrentar o medo de circular errante por ali, sem uma garantia de segurança. Conforme eu avançava meus passos, a obscuridade do findar do dia me perseguia e a penumbra era como uma capa que agora vestia toda cidade. Consegui em linha reta prosseguir e desafogar-me de um pesadelo em outro. Dessa vez eu sabia onde estava, no meio de nossa avenida principal. A copa das árvores era mais alta do que a praça da primeira parte de minha perdição. Porém, saber onde estava em nada significava segurança. O lampejo da familiaridade proposta pelo conhecimento deu lugar no segundo seguinte à consciência de estar em uma zona perigosa. Naquela avenida, precisamente naquelas quadras qualquer gangue poderia encontrar-me. Qualquer dupla mal intencionada poderia derrubar-me e levar-me os pertences, ou mesmo surrar-me pela mais pura adrenalina e diversão. Aqueles jovens de ambições confusas e violentas. Eu procurava seguir passeando como se estivesse confiante, de destino certeiro. Ou será que era melhor transparecer o espírito vagabundo que cobria àqueles jovens? Me misturar no recinto a céu aberto? A luminosidade dos postes não prestava cócegas à tamanha escuridão. Afundei minhas mãos nos bolsos da jaqueta. A bem da verdade era uma noite também de calor. Um cassino, ou melhor, um fliperama concentrava a atração maior. Além de ajuntar mais gente, também correspondia ao maior acúmulo de luz elétrica e, não por acaso, iluminação. As luzes praticamente cegavam aos desavisados. Menos àqueles jovens que estavam prontos para qualquer desafio. Ou ao menos assim aparentava, enquanto meu pobre coração voltava a subir marchas em disparada. Nem caminhar rápido demais para atestar medo, nem devagar demais para possibilitar uma maior ação deles todos suspeitos. Assim flutuam as ideias paranoicas que em nossas desventuras encontram porto. Por mais que colocar pessoas inocentes sob suspeita represente um preconceito que deveríamos combater, o modo de defesa naquele caminho falava mais alto. Consegui sair da avenida na esquina do posto de gasolina mais movimentado. Os motoqueiros arrancaram em ronco ensurdecedor. Os frentistas terminavam cada abastecimento com a cabeça baixa de quem não gostaria de visualizar alguém nos olhos. A resignação do trabalhador naquela zona de possível estopim de conflito. Era possível que a qualquer instante algo pesado e tremendo ocorresse. A atmosfera do ar dificultava a respiração fluente. Ou seriam somente os efeitos de meu medo iminente?

Pois consegui sair da avenida aquela pela rua do posto que fundia, na calçada oposta, com a maior igreja por aquelas bandas. Uma envidraçada em formato de enorme caixa, com vidros espelhados que faziam-nos deparar com nossos próprios vultos naquele limiar noturno. Deixei também a igreja para trás e as próximas referências eram somente os pontos de ônibus. Para minha surpresa a luminosidade voltava a orquestrar meus passos. Pisava com maior precisão, com maior certeza. Olhei pelos arredores para uma cidade de pouca movimentação. A loucura daquele barril de pólvora parecia ter passado. O céu tomava uma coloração acinzentada, como uma lata de tinta misturada entre azul, cinza e branco. A precipitação de chuva parecia evidente. Me atingiria a qualquer instante. Pude passar por uma feirinha em formato de camelódromo, onde algumas bancas estavam abertas, mais pessoas caminhavam, barulhentas, a conversar alto. Algumas delas estavam fantasiadas. Era como um grande festival, mas eu não possuía objetivo concreto. Procurei por alguns vídeo games que há anos não jogava. Estranhei o formato das bancas de jogos que estavam bastantes vazias, esquivas de opções relevantes. Só fariam com que eu comprasse algo por muito ato de engambelar. Preferi agradecer da ajuda que uns tentaram prestar e seguir adiante, tomando meu rumo. Subi pelas entranhas novamente do centro, com a impressão de que agora prosseguia novamente para a região do início sombrio de minha jornada. Caminhava eu em círculos? Passei pela rua de muitos ônibus, aquela que retirava as pessoas do centro rumo ao chamado bairro-cidade. Em uma linda fachada de prédio, que agora bem me recordo, sempre me chamou a atenção, havia o anúncio e a promessa de uma grande festa com apresentações musicais de qualidade duvidosa. Mas consultei o relógio e percebi que ela só começaria mais tarde. Ou seja, o jeito era gastar sapatos mais tempo por aquele espaço de pouca margem para erros. Consultei o relógio mais duas vezes para certificar que nada poderia ser feito. Maldita encenação e matação de tempo. Por que não caminho de volta àquela praça sombria, onde tudo de tão mal começou? Ora essa, foi exatamente o que fiz. Mãos novamente enterradas no bolso e pernas adiante. Quando saí daquela zona mais conturbada do centro, peguei um trajeto de rara elevação em nosso município. Uma chamada lomba, como diriam os porto-alegrenses. Relativa colina, subida pouco íngreme, mas não ignorável. O contorno era ao lado do maior hospital regional. Ao menos acredito eu que seja. Escrevo este relato alucinado e ébrio de meu próprio sono. Qual não foi a minha surpresa quando entrei na rua com nome de almirante e percebi a presença de um pedinte. Ele me perseguiu apressando os passos até alcançar-me. Foi logo falando em linguagem acelerada.

- Uma moedinha, meu amigo, por favor, sabe eu, não pense mal, você me conhece. Passei por você várias vezes. Sei qual é a sua. Saiba também qual é a minha. Não sou ladrão, veja bem. Meu aspecto pode confundir mas

Ele seguiria nesse ritmo e nessa ladainha por quadras, após vencermos a presença de todas as repetitivas pet shops daquela rua. Eis que ainda monossilábico e louco para livrar-me de tal intrusivo personagem, fui perdendo o raio da paciência quando o mesmo, após estar totalmente virado em minha direção, acabou não percebendo a chegada de um carro, que o colidiu com tudo. De imediato, surpreso e quase em estado de choque, pensei que a batida poderia até vitimar de forma definitiva o rapaz.

Perplexo, tentei prosseguir minha caminhada em busca de tempo ou do que fosse, mas logo mais e mais gente foi parando para tratar do assunto, se informar do assunto, na mais legítima legião da fofoca. Meu amigo de infância Igor parou com seu skate. Parecia um dos mais exaltados na rua. Talvez tenha me chamado. Uma comitiva agora me acompanhava como se eu fosse o culpado pelo fatídico acidente. Não o bastante, um policial veio direto em minha direção e me solicitando o par de pulsos para a convidativa colocação de algemas. Um querido. Novamente não bastasse a minha prisão baseada em não fazia ideia do quê, Igor Oliveira também acabou sendo levado. Parece que a polícia por ali recebia por quantidade de apreensões. E nós jovens suspeitos em lugar errado e em hora errada. Lamento informar-lhes minha desinformação quanto ao estado de saúde do pedinte tagarela. Se escapou dessa, uma das lições seria de olhar mais por onde anda. Talvez eu devesse torná-la para mim. Após tanta caminhada sem rumo, a esmo, como se diz. Quanto ao motorista culpado da performance, também não sei afirmar o que houve. Talvez tenha pago propina e sido liberado. Só não passaria totalmente impune pois as marcas da colisão com certeza se fazem presentes na lataria de seu veículo. Mas isto é apenas eu supondo.

Chegamos à prisão encaminhados por bem humorado policial. Ele estava neste estado de espírito contemplado pela promoção ou gratificação que iria receber por encaminhar tão perigosos jovens desordeiros. Se tomassem nossas acusações baseados em ficha criminal ao longo da vida, talvez jamais houvéssemos passado do consumo de maconha.

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