Me incomodam algumas palavras femininas que se tornam apenas apêndice do significado inicial destinado aos homens. As condessas apenas descendem dos condes. As abadessas apenas descendem dos abades. As baronesas após os barões. Assim posso pensar diversos exemplos.
A deusa acrescenta letra ao já existente deus. Eu gostaria que mais palavras fossem originárias às mulheres. Conforme mulher e homem são palavras tão distintas. Agrada o zangão ser o intruso na colmeia em relação à abelha. Outros animais são originariamente fêmeas. As lentas tartarugas, mas as rápidas onças. As altas girafas. As camufladas zebras. As trabalhadoras formigas. As graciosas baleias. As primaveris borboletas. Da humanidade, o representante ainda é o homem. É ele quem sobe ao palco para responder por conta. É ele quem ainda comete os feminicídios.
É ele quem organiza a política, as armas de fogo e as guerras. A palavra enfermeira, para amenizações ou tentativas de eventuais consertos, nos soa mais natural no feminino. É o homem quem aniquila anonimamente outro na guerra. Soldados são apenas números. Suas vítimas são apenas outros números. Mas algumas vítimas - palavra feminina - nem números são.
É o homem que exclui sobrenomes nas certidões. Aqui ou nos países hispanohablantes. É ele quem invisibiliza e nega direitos. É quem juiz superior julga em âmbito fora de suas competências. É quem trancafia mulheres no Oriente Médio, mas ainda nega oportunidades e igualdades salariais por todo o mundo. É quem causa o medo em motoristas mulheres que atendem passageiros. É quem assedia sem o pudor, o desprestígio, a punição que a situação mereceria. É quem também, mesmo sem a farda da toga, julga do alto nas relações de poder. É quem julga em relações sociedade afora ou entre as paredes das casas, em relações domésticas.
A voz das mulheres é silenciada no Afeganistão nos julgamentos. Se ela é estuprada ainda será vista como impura e acusada de adultério. E vista como impura e acusada dessa forma, ela envergonha a família. E, ao envergonhar e envergonhar-se, talvez ela se mate. Ou seja morta. E "que seja", muitos dirão no Afeganistão. Mas aqui também.
E o que fazemos pelas mulheres vítimas? E o que fazemos para que não sejam vítimas, para antecipar, para prevenir, para preservar, para que não sofram? E como a relação de poder entre pessoas que conhecemos pode moldar tudo isso? Qual o nosso papel nesse tabuleiro? Quando o 'amigo' age errado. Quando um pai assume posturas que não deveria. Quando as relações de poder, trabalho e capital estão gerindo os movimentos de abusadores marionetes. Abusadores marionetes - propositalmente no masculino.
Quando a invisibilidade - palavra feminina - está no trabalho. Está no esporte. Está nas ruas. Está sob as burcas. Está na internet. Está em processos de autoras, de atrizes, de atletas famosas em busca de reconhecimento, ou de respeito, ou de punição a seus algozes. Está no anonimato da prostituição a cada dia ou a cada noite. A invisibilidade nos passa despercebida, como o próprio nome diz. Mas ela toca a muitas. E se isso, na descoberta, no descobrir da capa, na aparição do que era invisível, se isso não nos toca de volta, quer dizer muito sobre nós mesmos.
Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade por meio de livros, de depoimentos, de mulheres que, para mim, ou para alguém contaram ao longo da história. Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade assim. Para elas, quase sempre a descoberta é na pele. Na prática. Consigo mesmas. No susto. No trauma. Na experiência. É consigo mesmas, ou com a mãe, com a amiga, com a vizinha. É a descoberta da invisibilidade na prática. É tentar reagir e sufocar. É tentar ser ouvida e não ter voz. É tentar sair e ser aprisionada. É muitas vezes não ter para onde correr. Muitas vezes é tarde demais.
E o texto é por todas que não tiveram tempo ou modo como saírem dessas capas. Mas é também pelas que ainda podem estar gritando ou querendo e ainda há tempo. Tempo do que era invisível nos saltar aos olhos.
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