Este filme me coçou os dedos para escrever sobre ele na primeira vista. Mas na segunda aparição dele na minha tela vocês não conseguiram fugir. 'Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre' - começo destacando a peculiaridade, a sensibilidade da escolha do título para esta obra que já nasce clássica. Nasce em demonstração, em acolhimento a todas as meninas, a todas as mulheres que precisam passar pelo que a personagem principal precisa: o aborto. É preciso dizer que este filme norte-americano supera várias barreiras que o cinema característico do país acaba deixando a desejar, por exemplo, a sensibilidade na direção. Nada de efeitos especiais ou cenas forçadas com trilha sonora e cortes rápidos. O filme é propositalmente deixado a correr, para sentirmo-nos mais e mais na pele de Autumm (Sidney Flanigan), a menina que conduz o filme com brilhantismo em sua atuação.
Não por acaso o nome dela é Outono, na tradução. Autumm passa o filme inteiro com a cara amarrada, o semblante fechado, e não é por menos. Desde a primeira cena, o ritmo do filme está ditado. Autumm se apresenta em uma espécie de show de talentos da escola, canta e toca violão, mas não é bem recebida pelo público. Logo saberemos que a bronca que os meninos têm com ela, ou o que poderia ser encarado como bronca de Autumm com os meninos, não é por acaso. Ela está de relacionamento finalizado, está em processo do começo de gravidez e tem pouquíssimas pessoas com quem contar nessa missão de evitar um nascimento nada desejado. Autumm logo percebe que não pode contar com o apoio familiar, como tantas e tantas meninas também não podem pelo mundo inteiro, seja por costumes, seja por legislação, crenças, religiões, ou conduções sociais que minimizam a opinião e a escolha da mulher sobre seu próprio corpo. Assim, em plenos Estados Unidos, Autumm, uma adolescente da Pensilvânia, recorre a outro ponto muito em comum e que talvez tenha aguçado minha atenção em relação ao filme como um todo: a viagem do interior do país para uma capital, para uma cidade de porte onde poderia realizar o procedimento, o aborto.
Esta também é uma situação comum a muitas jovens, a muitos jovens, pessoas aí independente da idade que necessitam de consultas médicas com especialistas mais renomados ou experientes, e a partir disso se deslocam em viagens às vezes longas, com dificuldades financeiras para enfrentar ônibus ou aviões. Para Autumm, havia o agravante de que não queria ficar marcada, identificada em sua pequena localidade como a menina do aborto. Para além do preconceito que poderia sofrer comunitariamente, os próprios médicos às vezes não autorizam o tipo de procedimento, polêmico como é um aborto. São situações que às vezes fogem da alçada dos clínicos, profissionais, cirurgiões, e passam pelo crivo severo da lei que proíbe o aborto. Enfim, Autumm passa por dificuldades a nível social e legislativo, podendo sofrer as sanções do julgamento pelas demais pessoas ou perante mesmo um júri. Complicada a missão da moça, que precisa recorrer então para essa ideia em uma clínica da grande Nova York, uma das maiores cidades do mundo.
O filme se desdobra recheado de cenas de agonia ou angústia, ao menos. Gosto de imaginar esse tipo de filme, conforme um de meus diretores favoritos Alfonso Cuarón - ou mesmo o polonês Krzystof Kieslowski, trabalha com a consecutividade das angústias, parto de uma metáfora de que são como as sucessivas ondas do mar em movimento. Ao vencermos uma, logo nos deparemos com a próxima que pode nos sucumbir, nos afogar. Precisamos vencer todas, sairmos invictos ou de nada adianta, nada feito. E Autumm é uma guerreira durante todos os rolos de filme. Com sua postura reservada, de quem não tem muito em quem confiar, ela permanece calculista, introspectiva, guiando suas sensações através de uma atuação que - volto a dizer - beira o impecável em suas reações. Conseguimos senti-la, identificar-nos em suas atitudes mais retraídas e misteriosas. Como não pensar o que se passa na mente de uma jovem nessa situação delicadíssima?
A amiga de Autumm a acompanha até Nova York. No ônibus a caminho da cidade grande, um rapaz se interessa pela amiga e, insistindo, puxando assunto, consegue o número do telefone dela. Eles voltariam a se encontrar mais tarde. É interessante observar o desenvolver desse relacionamento paralelo ao drama de Autumm. A amiga vai cedendo aos movimentos aos poucos, também ambientada pela natural desconfiança em relação ao rapaz desconhecido. Sobre o rapaz, a gente consegue até dar uma chance para possíveis boas intenções, mas a impressão que sempre nos percorre é de um interesseiro, um autoconfiante, um aproveitador das meninas que vêm do interior, um suposto especialista em cidade grande que oferece ajuda e alguma diversão. Fato é que estamos tomados pela atmosfera introspectiva de Autumm e até o 'simples' (?) desenrolar de um romance paralelo àquela altura tensa nos soa como um desrespeito ao real objetivo da jornada, pois a tensão é constante enquanto Autumm não consegue resolver a situação. Terá saúde para aguentar o procedimento? Terá dinheiro e modos de sobreviver na cidade grande, entre hospedagem e alimentação? A viagem, a ida e a volta, darão certo? A preocupação da família enquanto ela está ausente? São muitas perguntas e muitas angústias que trilham esse caminho acidentado da vida da jovem.
O filme é um convite ao desconforto, à angústia, à realidade de milhares de jovens anualmente, não só pelos Estados Unidos ou para nossa realidade brasileira, mas pelo mundo todo. Umas com maior liberdade para resolver o conflito, outras com menos. Todas com algum nível de tensão que uma gravidez, uma mudança brusca no organismo pode causar. A incerteza de "com quem contar?", a incerteza de "o que virá depois?". A incerteza na mente de que "o que estou fazendo é correto?" e "mas e quanto ao que fizeram comigo?", finalmente para o ponto crucial: "sou eu a errada? ou as circunstâncias permitem?". A atuação impera nesse conjunto da obra, das dúvidas, da aflição, das hesitações de uma jovem em apuros.
Dividimos em um filme bastante cru - para os padrões estadunidenses ou nova-iorquinos - as aflições da jovem Autumm. Sua necessidade de ir superando uma gama de acontecimentos em que nenhuma mente está preparada para enfrentar, independente da idade. Recapitulando: o fim de um relacionamento, a descoberta da gravidez, a inaceitação da sociedade, a não-possibilidade de contar com a família, com a medicina de sua localidade, os riscos de uma viagem distante, os riscos de enfrentar Nova York, a companhia da única amiga, mais fiel do que sensata, a aparição de um jovem totalmente desncecessário para seu contexto de angústias, as perguntas feitas para realizar o procedimento invasivo do aborto. A necessidade de confiar em estranhos, entre a pessoalidade e a impessoalidade do procedimento em uma clínica especializada em receber jovens de diferentes partes dos Estados Unidos.
Por conta disso tudo, a recomendação de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", um filme que já nasce clássico, na alusão da luta de tantas jovens que não querem, não estão prontas, fazem a escolha por não serem mães, no ainda ou no jamais, por dignidade, por decisão financeira, por planejamento familiar, por qualquer motivo que não deveria ser levado em consideração por mim, por nós, quando a decisão é na verdade dela. Um filme de suspense, de sobretudo drama, angustiante como tantas vezes convoca o uso dessa palavra - angústia - aqui na resenha sobre. Nunca. Raramente. Às vezes. Sempre. Inesquecível a voz da interrogadora nessa cena: as pausas, o drama, o vazio tentando ser povoado, tentando ser preenchido, pelas névoas da angústia.
Atuação da estreante Sidney Flanigan está à altura da grande proposta do filme |
Amizade entre as protagonistas nessa jornada que exigia muitas forças Imagens: Reprodução do filme Never Rarely Sometimes Always (2020) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário