Queria iniciar este texto com somente impressões de mais um domingo de movimento quase nulo no centro de nossa requintada cidade. Mas o estado de saúde terminal de meu avô, com quem logo destaco que pouco convivi, interrompe meus pensamentos e os redireciona. Imagino minha avó que foi casada com ele por muitos anos e com o qual teve duas filhas, minha mãe e minha tia. Meu avô que para exemplo dos mais positivos dentro de casa creio que não serviria, mas foi trabalhador nos caprichos da marcenaria, ramo com o qual eu precisaria renascer para tirar algum sustento/proveito. Aos seus chegados 90 anos, passava a queixar-se bastante de dores no quadril, situação comum aos carpinteiros.
A prima de minha mãe, portanto não filha de meu avô, mas que o tinha como um pai, por ter crescido sem o seu biológico, me contou certa vez das dores de cabeça que o atingiam pelo esforço repetitivo das batidas ou pelas algazarras que as mulheres da casa promoviam, em incessantes bate-bocas. Minha tia contou que meu avô posicionava a parte metálica e, portanto, gelada do martelo sobre sua testa, a fim de relaxar a pressão que a testa exercia. Hoje quem ameaça parar de funcionar não é a cabeça, mas a insuficiência cardíaca. Ele está transferido. Passados 90 anos desse imigrante filho de talvez alemães ou talvez poloneses pela inconstância total do sobrenome Venzke, nomenclatura que muito me faz pensar sobre minhas raízes mais para o centro ou mais para o leste da Europa. Na dúvida que me surge, simpatizo com a fragilidade da Polônia ao competir no mais visto futebol ou mesmo em outras modalidades, agora em clima olímpico e ela com dificuldades para somar um mísero ouro. Mesmo assim, ao longo da história é uma Polônia forte, muito por conta das polêmicas Olimpíadas realizadas nos tempos da Guerra Fria, em que o leste europeu competia forte com países como Bulgária, Romênia, Checoslováquia e a mais forte União Soviética, ainda insuperável por outro país que não sejam os Estados Unidos da América.
Mas voltando a meu avô, a única vez que o vi junto à minha vó, pois quando nasci já haviam terminado o relacionamento havia muitos anos, a única vez que os vi juntos foi no enterro de minha tia-avó. E conversaram como velhos amigos em uma conversa longa e até despropositada pela ocasião. Chegavam a se empolgar e a atrair a atenção dos demais comparecidos. Minha família e suas oportunidades como geradora de vergonhas alheias. No caso também a minha vergonha, pois eram meus ascendentes. Eles conversaram como um velho casal. E de fato eram, com o único porém de que não trocavam tantas palavras e de forma tão efusiva havia no mínimo um par de décadas - ao menos dentro do meu campo de visão - pode ser que tenham feito isso em outra ocasião. Mas como cada um passou a morar para uma ponta extrema de nossa cidade, creio que a raridade daquela ocasião era tremenda.
Pois imagino minha avó a chorar caso se confirme a notícia que nem tanto tememos, pois dentro de minha família há um consenso da passagem da vida e que, se não há mais o que tirar de positivo, qual o realmente mal dele partir? Não estamos em busca dos recordes por longevidade, embora sejam interessantes de observar nas famílias alheias. Meu avô hoje é o mais velho vivo, aos 90. Minha avó está prestes, na outra semana, se assim permitirem, completará 88. A família de minha mãe costuma parar de forma octagenária, como foi o caso da tia-avó do enterro em que minha avó e meu avô se encontraram - falecida aos 87.
Imagino minha avó a chorar pelas lembranças que com certeza evocará, das mais distantes às memórias ainda possíveis de acessar mesmo através da idade idosa. Por exemplo, ela deve ter em mente a longa conversa realizada no velório da irmã. Deve recordar juventude (jovens se casavam) e anos iniciais da vida adulta ao lado dele. Eles que tão pouco têm a ver, mas sinto como se completassem. Ele extremamente calado, ela extremamente falante. Ele calmo como água de poço, minha vó elétrica, tagarela, agitada, ansiosa como poucas pessoas. Se houvessem diagnósticos passados para essas doenças da mente, certeza que incluiriam medidas para conter tamanha ansiedade que a envolve.
Imagino minha avó a chorar porque das pessoas que duram tanto em nossas vidas e assim partem, as memórias permanecem, mais ou menos mexidas, isto conforme a idade avança e urge a batalha incessante contra outro alemão, o identificado mal Alzheimer. Minha avó não chegou a ser assim diagnosticada, mas passa por um processo até considerado natural de esquecer coisas recentes e trazer à baila acontecimentos de décadas anteriores, sobretudo da juventude e dos primeiros anos da vida adulta. Às vezes evocando personagens que estão apenas no meu imaginário pela falta total de convívio, como "Tiemília", os "Mackdanze", entre outros. Talvez o chamado Adão Bom Vizinho. Pessoas de meu total desconhecimento. Só não totalizado porque minha avó os transporta à nossa casa com histórias desses tempos mais do que remotos.
Imagino minha avó chorar porque mesmo que falasse mal do ex-companheiro, algo de proveitoso teve, nem que seja minha sagrada mãe e sua irmã. Algo de positivo teve, do contrário eu não estaria aqui. Eu que já os amaldiçoei por aqui estar, mas reconheço a importância deles para esse processo evolutivo e progressor da espécie humana. Trecho positivista demais para meu duvidável gosto. Mesmo com tantos os problemas que os levaram à separação e em maior ou menor parte superação, algo de um permanece sobre o outro. Eles que nunca romperam de vez o matrimônio em processo de divórcio. Meu avô arrumou outra companheira para a ponta oposta da cidade e eu os visitei algumas dezenas de vezes - não muitas. Eram encontros anuais e mais algumas vezes. Recordo que meu avô também nos visitava. Eles vinham de moto, formigas atômicas como as do desenho animado. O trânsito se tornou cada vez mais violento e as dores nas pernas - e quadril - de meu avô logo limitaram também essas visitas.
A violência tomou conta de bairro e lembro algumas histórias de tentarem invadir-lhes a casa por meio de golpes de prestação de serviço e também de pedidos de auxílio. Diabos que enganam velhos parcialmente indefesos. A família para meu avô foi muito mais a dos netos de sua segunda companheira. Não reclamo, pois, tão pouco afeto a outras pessoas e mesmo parentes, ainda pude usufruir do outro avô que minha avó nos forneceu, o tenente Gedir, muito prestativo e companheiro, mais jeitoso e carinhoso do que meu avô jamais seria, mesmo distante ou mesmo próximo. Tanto faz. Jamais reclamo sobre isso e, diferentemente à minha irmã, eu o entendo e perdoo qualquer falta. De minha parte, estamos livres e quites. Eu o agradeço por eu estar aqui hoje. Hoje, agora.
Termino com meu reiterado desejo de que meu avô não sofra e, se tiver que ser essa a viagem derradeira, de moto ou seja qual veículo for, que ele a faça e livre-se das dores no quadril, nas pernas, na postura e que jamais tenha novamente que consertar uma cama, uma cadeira ou posicionar o frio do martelo sobre sua testa. Este foi um breve relato sobre meu avô.
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