Moro no último prédio da última cidade ao Sul do Brasil, o último país em muitos indicadores. Ok, não é a última cidade, mas nenhuma cidade mais ao Sul do Brasil é maior do que a nossa. Rio Grande pode dizer o mesmo, se assim desejar, pois fica mais ao Sul. Porto Alegre pode se referir a si mesma como a capital mais ao Sul, nenhuma outra é maior do que ela no sentido meridional. Enfim. Moro literalmente no último prédio, na última quadra de uma das ruas importantes, onde estão prédios da administração pública, jornal, poder legislativo, associação de professores e servidores da educação pública e muito mais. Também estou. Com apenas uma volta da chave - me mentiram que eram duas - saio a passear e a explorar o novo bairro e suas peculiaridades.
Prédios essencialmente antigos com mais ou com menos desgaste. Recordo, quando retornava desses passos, de uma família negra a passear. A criança empurrada pelo pai em um carrinho assim projetado, enquanto a mãe colocava na linha um cachorro enroupado contra o frio. Reparei nos prédios que nos cercavam, no estilo colonial português, mas na mão de obra escrava. Hoje menos de 1% das pessoas pensa nisso quando cruza por essas históricas ruas, que tanto presenciaram.
Ao morar em um prédio - o último da última maior cidade? - tenho reparado mais para cima, os cartazes de vende-se ou aluga-se, muitos espaços vazios. Muita gente nas ruas. O contraste é tremendo. Acumulam-se em portas de bancos, marquises, calçadas, prédios públicos e privados em busca de algum aconchego. Muitos preferem ficar assim e não seguir as ordens de abrigos municipais. Riscos contra as noites de temperatura quase negativa. Meu amigo relata que à porta do banco com o qual trabalha para suas transações, os moradores de rua o têm ocupado (invadido? a gosto de quem lê... barbaridade) para suas refeições mas também necessidades fisiológicas. O mundo selvagem do nosso centro. Haja trabalho para quem lida com a limpeza do espaço. Haja constrangimento aos clientes. E quem age pelos infratores, que permanecem nas ruas? Haja polêmica. Só fica também a lembrança que as instituições bancárias e seus banqueiros aumentam o lucro trimestral ano após ano, faturam de bilhões a trilhões - para quem sabe contar até tudo isso. Os bancários até sabem, mas nunca têm essa quantidade em mãos. Quanto aos ali depositados, contentam-se com algumas moedas para uma refeição. Embora não se faça mais refeição com pouco níquel.
Pela praça, quando eu ia em direção ao centro do centro, as crianças se enfileiravam para brincar nos espaços públicos, sobretudo nos balanços, escorregadores e gangorra. Os pais a vigiar, o vozerio a ecoar ao longe. Quando regressei, com a noite se aproximando os brinquedos já estavam vazios, a penumbra a tomar forma. As últimas poderiam protestar a ordem do recolhimento rumo às suas casas. Ordens dos pais. Enquanto isso, descia de um carro, a poucos metros dali, uma senhora com muita dificuldade de locomoção, necessitando da ajuda das mais jovens pessoas de sua família. Seguiram em passos retesados, os sapatos como âncoras, como revela a música de La Vela Puerca.
Os grafites contrastam ou muitas vezes complementam-se com a pintura viva de alguns prédios antigos. Os espaços vazios também se fazem notar, em uma ou outra esquina. O mato cresce desordenado. É o panorama do final do centro. Para outro lado, rumo ao bairro ferroviário (amo chamar assim) Simões Lopes, um maluco de esquina se assemelha a qualquer trabalhador marítimo, de touca, barba por fazer, dentes pouco cuidados e a balbuciar besteiras. Cumprimentou-nos e perguntou sobre as gurias. Disse que é bom e tem que ter, que a ele faziam falta. Me questiono se realmente fazem e confesso que - hoje - são raras noites. Para outro transeunte, ele cumprimenta um suposto primo. Tudo invenção daquela mente mirabolante. Logo adiante, um outro tenta adentrar um portão, provavelmente da empresa em que trabalha, portão extenso, de ferro e que serve para qualquer manobrista de caminhão contorná-lo com facilidade. Assim espero que seja e não uma cena de arrombamento...
Em outra madrugada, escutei um suposto assalto. Com as janelas todas cerradas como manda o horário - mas poderia ser desde mais cedo da noite - um suposto assaltante a atormentar um suposto passista. O ameaçado insistia em voz tentando manter a calma, porém um pouco trêmula na execução da fala. Dizia não portar objetos de valor em um traduzido "já te disse que tenho nada" e complementou "só queria dar uma banda". O relógio marcava 4 horas da manhã. Eles seguiram caminhando rumo aos fundos desse fim de Centro, para onde a vila se instaura e muitos anônimos para nós mas bem conhecidos entre eles, se empilham nos intuitos da sobrevivência, em busca do aluguel ou da moradia mais barata, em busca de um sonhado despertar melhor em algum dia.
No regresso para minha casa, pela narrada caminhada, antes de encontrar a família negra e pensar sobre a mão de obra dos 'portugueses' prédios, passei pelo edifício onde uma amiga morava. Ela transferiu-se para Brasília. O prédio está pintado de forma diferente e, aos meus olhos, nunca pareceu tão pequeno, assim em azul. A rua que por ali corre ganhou uma camada asfáltica, coisa que me inclina a dizer que chega a ser bagaceira. Passados alguns dias da operação de recapagem, o cheio da camada asfáltica ainda se ergue contra nossas narinas, é inebriante, um químico poderoso. Passo por portas de ferro baixadas - são as lojas - passo por igreja que também por milagre em pleno domingo encontra-se fechada. Mesmo em pandemia, a missa deve ter sido mais cedo. Pela rápida excursão aos rumos do Simões Lopes encontramos uma aberta. Enfim, a mais próxima de minha casa, histórica construção que ergue-se coberta por plantas, cartão postal local, apelidada carinhosa ou ofensivamente de "cabeluda", encontra-se fechada. Seus singelos bancos ordenados e distribuídos para um gramado e um jardim também não recebem hóspedes. Pela pousada próxima de minha morada, um sujeito não alterou a posição entre o meu ir e vir, pois permanece com seus tênis Adidas depositados sobre a mesinha de centro. Tremendo tédio que o inebria tanto quanto a camada asfáltica afetou-me minuto atrás.
Com mais uma volta para abrir e mais uma para fechar, regresso ao último prédio da última quadra da última maior cidade do Brasil, um dos últimos países em alguns indicadores. O que estou fazendo comigo? Quais serão os próximos passos? Emaranhado de incertezas, mas com certeza a chave da porta vira menos do que eu achava que precisaria virar. E isso não é metáfora. Ou é?
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