15/04/2021

Gostos

Estou aqui com raro lapso de tempo, mas sem assunto. A cabeça incomodada por causa de futebol. Tão 2011, tão atual, dez anos depois. Achei que muita coisa desse naipe passaria a não me atormentar mais, mas vida de torcedor deve ser assim mesmo. Só que uns sofrem mais do que outros, naturalmente, como ocorre em diversos ramos da vida. O futebol é novamente a metáfora maior para equiparar outros problemas. Do contrário eu não teria terminado a faculdade de Jornalismo com TCC que ornamentava situações como essa. O jogo e a vida, lado a lado, correndo e ocorrendo em paralelo.

Antes de aqui iniciar, pensava sobre o quadro de conseguir me expressar às vezes melhor no diminuto número de léxicos que conheço em outro idioma do que na própria língua materna do português. Por conhecer menos palavras, as utilizo o melhor que posso, quase como se fosse uma... uma das mãos, uma das rodadas, como queiram, em um jogo de cartas. Tu jogas com o que tens e segue em frente. Assim componho minhas atividades para o curso superior de espanhol, que tenho feito.

Lembrei ainda sobre o Grêmio, motivo maior da cabeça inchada, inflacionada por outros clubes derrotados na Europa, aqui e acolá, lembrei sobre o Grêmio das ocasiões de sua temporada vencedora - uma das raras que acompanhei. E de fato acompanhei porque estive lá em dois duelos da Libertadores 2017. Nas quartas e na semifinal e foram totalmente distintos. Nas quartas o dia da viagem foi perfeito. A viagem, o velho Hamilton, a pessoa mais engraçada que já vi para excursões, suas piadas repetitivas ou bem boladas de improviso, como um seriado de um homem só. Ele e a plateia. E está feito o Hamilton com suas ideias mirabolantes. Além do velho Hamilton, a promessa que eu tinha de conhecer uma das pessoas mais especiais com as quais tive contato. E deu tudo certo naquela ocasião. Nosso nervosismo pré-jogo, até o meu antes aparente tanto faz caso o Botafogo passasse, deram lugar ao nervosismo de uma torcida crônica, os mais de 15 anos em que me apegava àquele clube. O gol da vitória surgindo no minuto no qual consegui ligar o rádio do celular e sintonizar na partida. A reza do narrador gremista Cristiano Oliveski, como ele pediu - para Deus, para o Orixá, para quem quisermos. E apoiados nisso a bola entrou no exato lance. Tudo conspirava a favor. Por ter sintonizado o jogo no celular, não sei como, mesmo com o estádio ali, tive a informação do gol antes e saí a vibrar antes que a televisão do bar à frente denunciasse. Tudo isso na vila Farrapos, no Humaitá ou seja lá como chamem o bairro em que ora se aporta o Grêmio Porto Alegrense.

O panorama se dividiu bruscamente para o jogo da semifinal. Passados os meses e tê-la conhecida melhor, poderia eu não perceber, embebido na paixão daquele ano, que as estruturas provavelmente já derrapassem entre nós. Na tarde em que adquiri lugar para excursão, tomei um caldo do maior granizo que já presenciei na rua. Achei que o teto dos carros iria ceder danificado e impactado de tantas pedras. O que seriam de nossas cabeças, abaixo dos toldos, devidamente protegidas, se toldos não houvessem? Após esse alarmante episódio, na semana de expectativa enquanto isso, o pensamento estava mais nela do que no jogo, pois os 0x3 conquistados fora de casa na partida de ida traziam a tranquilidade para confirmar a classificação à final. Bom recordar que também o adversário, o equatoriano Barcelona, havia eliminado o Santos na fatídica noite descrita das quartas de final. Naquela noite perfeita. Oh, sim. Mas na semifinal, pelo contrário, tudo passava a piorar quando o ônibus teve um problema no câmbio da marcha e quase não conseguia adentrar nos caminhos de Porto Alegre. Havia sim o registro do desespero. Não sabíamos se seria necessária a troca de veículo para a derradeira viagem de volta. Para aquele dia, combinei com ela de nos encontrarmos. E nos encontramos. Na verdade, antes, não consegui achar um amigo meu pelos entornos abarrotados de gente. Era muita gente, eram muitos ânimos, estávamos todos apreensivos, efusivos e nervosos, como o preceder de qualquer decisão, apesar da larga vantagem no placar. Não encontrei os amigos meus, não tive tempo de combinatória disposição, mas tive meu requisitado tempo com ela. Para o lado de fora, o bar em que assistimos às quartas de final também não estava com a televisão funcionando. Lembro do mesmo bonachão sujeito que bem nos atendeu meses atrás e que dessa vez acabou por lamentar a perda do aparelho televisivo sem sinal e, assim consequentemente, perdeu a clientela para as bebidas e lanches da noite. Santo Expedito o nome do bar. Chamado carinhosamente por um dos frequentadores de Dito. Pois que o Dito não iria transmitir o jogo e parece que os demais bares haviam sumido, evacuado, fugido de órbita. Conseguimos encontrar um local de lanches, meio bar, meio fusão de cada. Piores acomodados do que da outra vez, o novo descaso foi uma bateria completamente desalinhada. Um barulho que tentava impulsionar um clima de jogo para o lado de fora, mas era mais uma perturbação em nossos ouvidos. Sintonizei no rádio pela Rádio Grenal, talvez a primeira a qual consegui sintonia. De nada adiantou sintonizar sinal FM, pois o desempenho do time em campo era arrastado e agoniante. Sofreu o gol e a consequente derrota por 1x0. Dessa vez não havia velho Hamilton no ônibus para nos consolar com suas anedotas. Aliás, tirando minhas impressões individuais, talvez nenhum dos demais borrachos necessitasse realmente de algum consolo. Ora, a equipe tricolor havia passado para a decisão da Copa Libertadores, apesar da derrota na volta. Placar agregado de 3x1. Na saída, aí sim um outro inconveniente se formou logo ao apito final. No meio da rua que corre paralela ao estádio, um dos policiais militares responsáveis, há quem assim defina, pela segurança do local, esvaziou sua lata de spray de pimenta contra o ar, fazendo com que as partículas ferissem alguns transeuntes que comemoravam a tal da classificação. Embebido em álcool, tentei argumentar aos gritos e urros sobre a atitude covarde do oficial de farda. Não me ouviram. Passaram adiante. Se distanciavam. Nenhum colega de serviço dele deteu-o pela atitude acometida, grosseira, canastrona. Criminosa. Os policiais impunes como sempre. Em seguida, se multiplicavam os torcedores nas ruas pela classificação recém adquirida. O spray de pimenta havia se dissipado, mas minha lembrança não. Mais uma memória, desde o absurdo do granizo, o maior que já sofri estando na rua, o câmbio estragado do ônibus que graças a quem quer seja estava consertado e prontificado para voltarmos à nossa cidade, o bar com problema da televisão - pobre Dito, perdeu renda naquela noite, aliás, como devem estar na pandemia? A falta de público; cruel - o desempenho pífio em campo, embrulhado no regulamento pela vantagem adquirida no jogo de ida, segunda derrota na campanha quase perfeita, a batucada que não cessava do primeiro para o segundo tempo, dos que poderíamos declarar inimigos do ritmo, até finalmente o problema de ordem policial contra torcedores causadores de nenhuma infração. Sucessão de desgraças que, salvo me engano, demorei mais a descrever do que as coisas boas.

E assim nos conduzimos muitas vezes. Mais empenhados nas falhas do que nas comemorativas conquistas. Tanto tempo a mais de sofrimento do que ocupados pelas efêmeras glórias que nos povoariam o âmago. Âmago que tão logo se esvazia, como o movimento respiratório, o inspirar e o expirar. Vazios novamente nos encontramos, largados, isolados, depreciados, acometidos, fragilizados, necessitados de um novo horizonte, de um novo porto, de um novo rumo, de uma nova sensação, uma nova chama, uma nova luz, uma nova experiência, um algo a mais para o preenchimento da esteira dos dias e das folhas descartáveis de calendário que lotam basuras. Por ora, como muitas imagens me vem circulando a mente, quase que implorando minha atenção para realizá-las em atos textuais, desempenhei novamente minha função, um pouco a meu bel prazer, e muito a contragosto. Mas é o que se tem. Por ora é isso, até que encontre na faixa de pedestres a próxima inspiração, o tempo de ócio, a vontade ou a necessidade adida para me derramar em confissões e relatos em algum lugar guardados na memória. No retrovisor até algumas vitórias, mas no presente momento, o amargor, o metálico, o cinzento paladar da derrota que acossa a língua.

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