07/03/2021

A Última Dança

Após a última dança, o corpo se desconecta aos poucos do transe em que se encontrava. Como uma carroça que frea, como um ventilador que se desliga e segue girando em rotações cada vez mais lentas. Como um sonho que termina, mas permanece em fragmentos que se esfumaçam à medida que acordamos.

A última dança vem na última música. Quando o silêncio vem crescendo, interrompendo a canção final. Os músicos terminam seu trabalho, sem soar, mas com os instrumentos ainda em mãos ou próximos do soprar da boca. O microfone ainda plugado. Se for eletrônica a música, o eco parte em desmanche até abandonar nosso interior auricular. Ressoa sobre a mente ainda o findar. Propagam-se as ondas que se reduzem.

A última dança tem o sabor nela mesma, em busca da lembrança, da memória, da eternidade. Mas nada se garante. Ela deve apenas ser dançada. Dá-se o máximo naquele gozo de minutos, talvez últimos segundos. Pois é a última dança.

Após a última dança, os pensamentos pertencentes à dança se diluem, pois não há mais dança, foi a última. O que se pensava, ou deixava-se de se pensar, fica para trás. A realidade é um silêncio em espiral crescente, encobridor, uma pressão sobre os ouvidos, um par de luzes ligadas para sinalizar que, sim, acabou a música, acabou-se a última dança. As luzes que mexem, diferem o tamanho das pupilas, o antes e o depois, o clima ajustado para a última das danças e o posterior fim de festa, o término maltrapilho, a maquiagem que foi maquiada, sobrepujada pelo instinto, pelo suor, pelo desembaraço, pelo colidir de corpos e rostos, pelo resfolegar zombeteiro. Os pés cansados das danças até a última delas, os sapatos deixados para trás, os brilhos gastos, os pés descalços, o perigo de serem pisoteados, dos corpos, das massas ocuparem o mesmo espaço, não respeitando ao dito científico da física; o chão do salão e seus restos e as bebidas jogadas fora, e os copos descartáveis, e papéis e serpetinas e confetes e demais adereços a depender da festividade em questão - até a última dança.

A última dança reserva vestimentas que eram muito aguardadas por utilizar. Aquele terno, peça mais cara, ou ao menos de maior destaque no guarda roupa. Ele termina amarrotado, manchado, talvez de bebida, talvez agredido pelas glândulas sudoríparas contra o dorso, com manchas nas axilas, com um lenço para fora, com a companheira gravata solta pela festa. Um smoking, um colete perdido pelo encosto de alguma cadeira, a ser retomado ao final da última dança, pois na rua estará frio. Alguns ficam esquecidos pelos encostos ou nos trocados das chapelarias. É possível errar de paletó quando mal identificado. Os vestidos das mulheres, alugados, escolhidos a dedo, moldados, pré-moldados, cosidos, descosidos, apertados, soltos, desbaratados ou de missões cumpridas. Terminam suas passagens pelos salões para ir de encontro às bolsas, largadas às mesas, cuidadas ou descuidadas enquanto tentavam aproveitar a última dança.

Na última dança reside o alívio de quem não dançava nem iria dançar, só queria ir embora. Esperava carona. Esperava um aviso, um sobreaviso, um sinal... um final. E houve, pois foi a última dança. As luzes se acendem, os rostos se procuram ou se escondem. Se descobrem pessoas, posturas, casais feitos ou desfeitos, virtudes ou defeitos, penteados arrumados ou bagunçados, gel e coques que abandonaram seus donos. Brilhantina não mais brilhante, instante que desenha outra realidade, mais ou menos alternativa. A última música devora a festa, é o gran finale, é o c'est fini, a rodada derradeira, a tomada de cena decisiva, o epílogo de cada um. Na última dança, pode-se congelar as pupilas de uma maneira depois apenas imaginária, uma repetição das contracenas, apenas para dentro da mente. Se só existe o presente, não existe mais a última dança, apenas sua lembrança, no cárcere da memória, no imaterial, na invalidez, no campo quimérico.

Na última dança, cada movimento é decisivo, cada balé é bem traçado, ou mesmo desajeitado, já do cansaço redigido ao longo de atmosférica noite, ambiental contemplante, ambiental contemplado. Ambiental que desaparece para o valsar da última dança, mais tardiamente, mais derradeira caso seja a última noite. Às vezes é a última e jamais saberemos antes da última esperança - esperança de que não seja a última noite.

Na última dança, quando acende-se as luzes sobre o baile, sobre a festa, quando apagam-se as luzes sobre o palco, outras serestas, tudo indica o final dos tempos - ao menos daqueles ali depositados em um cheque sem fundos, chamado última dança. Aquela que prometia, aquela que surpreende, caso se espera mais alguma para fechar a noite. Mas a aragem, o aspecto, o tempo suspenso no ar indicavam que era a última - a última dança. O teatro das marionetes a fechar as cortinas, as máscaras a debruçarem-se, encuralarem-se, saltarem para fora dos rostos. Nada mais poderia ser feito, pois era o último gingado, os últimos passos, requebrados, swings, para quem gosta assim chamar, dos sultões, das baronesas, dos escalados, das preferidas, dos guerreiros e guerreiras, lutadores contra a própria sorte e sorte alheia, em um canavial, ritmo carnaval de última dança.

Como uma vela soprada, com um passista solitário, como um artista de rua, como um volante que atua sem a bola, como um jogador em findar de carreira, um capitão temido e representante de sua esquadra, um capitão de navio no púlpito diante de seus serviçais, operários e seus chefes, mordomos, mordomias e seus amos, cargos de equidade, tudo ali, junto e misturado, na última dança. O artista, a artista, seja quem for, se abaixam, apanham o chapéu, dos trocados que o preencheram e vão para guaiaca antes do adereço da cabeça voltar ou não para cobrir o couro cabeludo ou então a careca. O número de circo encerrado, a praça desconjuntada, os pedestres a dispersarem, os músicos a se aliviarem, dos instrumentos de sopro, dos dedos calejados contra os instrumentos de cordas, a garganta que ora respira, os pés que reconhecem que tiveram trabalho e agora descansam, doem, sentem, contraem-se, espicham-se e sabem que a última dança foi tarefa executada, ato de ata assinada. Quem sabe em uma próxima voltem todos para mais um capítulo da última dança, mesmo que, para tantos, esta tenha sido a última. Até a próxima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário