Os sonhos matinais são aqueles mais fáceis de ser evocados à memória, tudo está fresco no vasto campo das ideias e daí alimentamos a prosa no dia seguinte. É o caso aqui mencionado. Sonhei que estava saindo da frente de nossa casa, na verdade, de nossa casa que está sendo exatamente vendida nesta semana, então o sonhar necessitava de um update, mas são detalhes. Eu saía pela porta da frente, em visita anunciada pelo chamado de uma buzina. E do carro saía a mãe de um antigo colega de ensino fundamental.
Era tudo muito estranho porque, ao volante, estava seu ex-marido, eles divorciados. Mas ela desceu efusivamente do banco de trás e veio a meu encontro me parabenizar por algo concretizado, agora sem eu saber se uma formatura, nova oportunidade de emprego ou o que seria. Ademais, no banco imediatamente ao lado do motorista estava um dos filhos do casal, no caso, irmão de meu colega de ensino fundamental. Minha visão turva para dentro dos limítrofes delimitados pelo insufilm do carro me fazia identificar a dupla, o pai e filho nos bancos dianteiros. Não desceram durante a ligeira visita. Veloz, mas emocionada por parte da senhora, que continuava gordinha e aparentemente nova como era na época em que fomos colegas, eu e aquele justamente ausente da visita, mas ponto comum para que eu conhecesse aquela família estacionada ao meio fim imediato à nossa garagem.
A dona veio em prantos, quase vertendo as lágrimas e abraçou-me em tamanho envolvimento de braços e corpo. Fiquei quase constrangido, como se espera que eu reaja diante essa situação. Observava sua extravagância em lidar com o que estava acontecendo enquanto os demais sorriam amarelados de dentro do veículo. Lembrei de meu ex-colega do fundamental. Ele era o mais gordinho entre nós todos, caso que chamava a atenção naquele começo de novo século e milênio, a obesidade infantil só aumentou de lá para cá, mas ainda era raridade na época. Ele, ao longo do desenvolvimento daqueles fecundos anos, permanecia na condição do mais gordinho da classe e porventura sofreria bullying em relação a isso. Acredito até que sofreu pouco, pois era camarada da maioria, tinha esse determinado prestígio e uma boa concentração de força física para se defender de ofensas. Lembro uma vez que empurrou e minha canela sangrou ao chocar-me com um degrau, uma parelha de altura em tijolos que cercavam a caixa de areia da pré-escola. Só para ficar em exemplo.
Ele, ao mesmo tempo, naquele ano de pré-escola que cursei, foi o primeiro a se oferecer a visitar minha casa. Eu nem sabia como lidava com isso, porque não estava acostumado ao recebimento de visitas dessa forma. E, pelo recordar da sonhadora e inesperada visita do restante de sua família, ainda não evoluí o suficiente nesse quesito. Nesse quesito esquisito. Mas aceitamos essa ida combinada às pressas após um dia, uma tarde normal de aula pré-escolar. Lembro que esparramamos meu máximo de brinquedos pelo quarto e deu uma senhora trabalheira juntá-los ao término da visita. Isso eu recordo. Eu não era de demasiados recursos, nada eletrônico ou muito extravagante, eram brinquedos de camelódromo, entre dinossauros e animais de fazenda em plástico, algumas pecinhas para construir humildes cidades, não maiores que Turuçu ou Canguçu. E um baralho de cartas que ainda temos guardada aquela caixa que rachou a fronte plastificada, no material transparente que antecede o manusear das cartas ali depositadas.
Lembro disso tudo esparramado sobre meu tapete e o trabalho que dá receber pessoas, limpar tudo ali depois. Hoje em dia recorreríamos a essa sensação ao lavar a louça de jantares, ou mesmo o recolhimento dos reservatórios de bebida alcoólica vazios, além dos possíveis estragos vindouros, como louças, principalmente copos ou taças despedaçados por descuidadas ações ébrias. Faz parte.
Do menino ausente na visita familiar inesperada em sonho, hoje afirmo que está por formatura de engenheiro civil e tem uma das namoradas mais belas entre nossos amigos de alguma forma próximos. Um dos últimos encontros com ele foi quando voltava a pé para casa pela rua onde hoje moro, ele que mora por ali em prédio, na descida para avenida Juscelino Kubitschek. Trocamos uma ideia sobre a ida que teve por um período passando pelo leste europeu, o que achei bem diferente das cordiais visitas que pessoas com recursos financeiros fazem pelo lado ocidental da Europa. Recordo fotos dele pela Bulgária por exemplo. E não deixamos de nos ater a condição socioeconômica de nosso desestruturado município e prontamente ele recordou a vez em que acabou assaltado exatamente no local, na calçada em que nos postávamos a conversar sobre. Estremeci ligeiramente, chequei meus humildes pertences em dinheiro para no máximo duas refeições, como segurança, porque geralmente gastaria com nenhuma àquele horário da tarde, e também meu celular, na época ainda sem estar com a tela trincada, enfim. Conversamos em resolutas e desemaranhadas lembranças e seguimos nossos rumos, que eram opostos, o que nos impedia de prosseguir a conversação. Se bem associo, justamente ele mantinha hábitos de seguidas idas à academia, para manter a forma física que ele havia combatido, agora distante da obesidade que lhe caracterizava nos primeiros anos de vida. Fico feliz por ele.
Creio nele um exemplo de superação desses paradigmas, porque, nunca indaguei-o de frente, mas imagino que somente ele possa responder sobre como se sentia, naqueles preconceitos ora mais abertos, ora velados e sobretudo psicológicos que volveavam por sua mente. Hoje ele supera isso no que demonstra fisicamente e com aparente melhor qualidade de vida e alimentação. Creio que cada um deve cuidar de seu corpo da forma que lhe convém, mas fiquei matutado com essa história ao encerramento de matutino sonho. Abracei somente sua mãe, sorri e acenei para os rapazes, seu pai e seu irmão, no carro. Fiquei agradecido com tamanha lembrança a que recorreram à visita neste corriqueiro mundo, então válida a sensação de importância para encerrar aquele momento dormente e iniciar o dia. Boa semana a quem está lendo, lhe desejo, desde o fundo do peito até a época em que estão a colher essas rabiscadas linhas. Até a próxima.
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