Estava solitário bebendo em um bar. Primeiro apenas bebia, depois me percebi em solilóquio com minhas ideias e o copo de líquido espumado defronte. Olhei em volta para a agitação natural desses happy hours combinados, camisas de serviço, mangas arregaçadas, sorrisos esculpidos pela distração que mais a cerveja do que a companhia proporcionam. Eu estava só. Bebia a goles interrompidos, até que um cardápio diferente sobre o balcãozinho de canto, nem bem uma mesa, apenas uma prateleira de madeira onde apoiávamos os copos, quando muito alguma improvisada refeição, mas deparei-me com aquele folheto revestido de plástico que me chamou a atenção.
Não era um cardápio, olhei para os lados se mais alguém me percebia, mas seguiam todos no ritmar festivo e descontraído. Do topo da página, desci os olhos percorrendo sinuosamente o caminho antes digitado. Fiquei contente com o que vi. Era um anúncio promocional de um site que eu já havia escrito, a BABEL Brasil (solicitavam chamá-la em letras garrafais mesmo e sempre no feminino, não O site Babel; tinha inspiração na torre maluca aquela). Na promoção, em troca de algum préstimo ao site, você concorria a uma viagem para congresso de jornalismo e afins onde quer que fosse em todo o mundo. Fiquei pensativo quem bancaria os custos, já que o comum era não remunerarem seus colaboradores, uma escola para o aprendizado, mas longe de qualquer sustento no mundo real. Enfim, o espanhol de Madrid ou alguém aqui do Brasil arcaria com as vantagens de quem vencesse a referida promoção. Eu entornei meu copo, pousei-o com certa força em atitude de súbito raio de confiança e resolvi que iria participar.
Participei. E venci. Formado na área e sem maiores interesses em contínuo estudo em jornalismo, após longo período enclausurado em função da pandemia de coronavírus, queria aproveitar a maneira turística. Pensava em países distantes, mas sabia da dificuldade para driblar as barreiras dos idiomas, então, ao que me parece, optei mesmo pela Espanha. Transportado para as terras ibéricas, percebia que só me ressarciam pelo tempo de congresso, geralmente curtos em três ou, com otimismo, cinco dias. Mas igual fui, com o pensamento totalmente voltado para o turismo, sem ao menos saber a programação exata do congresso. Será que levei a vaga de outro mais interessado? Me perdoava que merecia, após o sofrimento da monotonia de anos vindouros em desfazimento.
Mal largava minhas tralhas no hotel e tentava caminhar o máximo possível pelas ruas ao redor, encontrando-me com um dia nublado com nuvens grosseiras e aparentemente aproximadas com a superfície terrestre, além de árvores altas, mas com pouca folhagem. Um bálsamo em ar pesado envolvia o ar, prosseguia com a dificultosa respiração que retardava meus passos. Olhava em volta em busca de bonitas paisagens e arquiteturas, as quais costumo fotografar por onde viajo. Passeava pelas calçadas largas que me lembravam certos bairros de Porto Alegre. Os prédios também possuíam fachadas semelhantes, notava em janelas amplas e colunas de sustentação. Grafites e pichações me acompanhavam como um trailer de um filme. Terrenos baldios começavam a aparecer conforme eu me afastava da segurança hoteleira. Comecei a perseguir, a esmo, os matagais que cresciam até quase a altura de nossos joelhos. Contornei o que percebi ser uma praça próxima a uma biblioteca. Na verdade, a biblioteca como figura central, que se erguia como motivo maior para a extensão concretada do chão da praça. Ali, em breves degraus, que saltei, dormiam ou se preparavam para isso, moradores de rua. Enquanto o crepúsculo não denotava o encerramento da tarde, um velho senhor em cadeira de praia observava o movimento e percebeu-me como legítimo estrangeiro. Acho que estava acompanhado de sua velha senhora ou fingia estar, acontecimento comum aos viúvos sem maior rumo para os últimos anos de vida. Pela visão e audição periféricas a meu ainda desconhecido objetivo, percebia eu que o velho tecia comentários para sua esposa ou simulacro de. Era uma cidade estranha, mas o mundo assim o é.
Contornei a grande biblioteca, ali próximo uma catedral, como há de se, no mínimo, empatar esse jogo. Pensava dias atrás na quantidade de igrejas e suas isenções de impostos, enquanto as escolas definham em investimentos, mais tomadas pelos congelamentos do que chamam gastos. Mundo estranho. Os prédios, apesar de serem majestosos me pareciam surgir em área afastada à grande localidade central do município espanhol (ou brasileiro?). Sem um aglomerado urbano o suficiente para ser reconhecido como centro, defrontei-me ali com um pequeno e tosco hotel de arquitetura nem nova nem velha, prédio branco com contornos em bordô para janelas e portas, algo até mais alemão e que me lembrava os ares de Joinville. Sem saber bem o porquê, rumei àquele espaço, certificado que o subir da noite se fazia em substituição aos vestígios de sol. Ultrapassei qualquer impedimento ao não ser questionado por atendimentos portuários, o que obviamente atiçou minhas suspeitas quanto à qualidade dos serviços ali prestados.
Subi a escadaria e entrei em um quarto, altamente surpreendido, porque ali estavam a representação de meus pais com um outro casal. Eles já conversavam e os lençóis não eram mais participantes protagonistas. Meus pais ajeitavam-se para retirarem-se, mal dando-me a atenção necessária em extraordinária descoberta. Meu pai adiantou-se que iria seguir para o carro e que esperava minha mãe por lá. O casal proprietário do alquiler mostrava-se decepcionado. "É sempre assim, podem ir, podem ir..."
"As pessoas nos acham estranhos", completava o companheiro daquela dama, que já punha-se a fumar com habilidosa transição dedal entre dedo médio e indicador. Eu olhava estarrecido para todos os personagens ali depositados. Meu pai que já apressado descera, já ausentado, minha mãe pronta para ser a próxima a deixar o recinto. Pensava que diabos poderia ser aquela prática em ambiente suspeito e com qual objetivo. Como poderia eu encontrá-los de maneira surpresa e completamente inesperada. Eu viajava sozinho, havia ganho a promoção, havia me deslocado centenas ou até milhares de quilômetros. Sim, sim, milhares, sem dúvida. Como assim?
O casal tentou convencer-me a ficar e conversar um pouco. Ela era bastante atraente e sabia como conduzir uma conversa inicial, o que praticamente me punha em dúvida. Sem deixar-me seduzir aos vigaristas, fiz menção ao avançado da hora e estava pronto a retirar-me como há instantes haviam meus pais feito. Tomando fôlego ao ultrapassar o perímetro demarcado pela porta, o estreito corredor me revelava uma alucinação, só poderia ser. A escada estava fatiada, exatamente aquela em que eu havia subido para chegar ao quarto derradeiro. Havia um vão bastante acentuado entre o começo, o topo da escadaria que dava para aquele andar e a sequência até o estreito corredor de baixo. Impossível. Calculei minhas possibilidades de salto e senti-me ineficaz para tal missão. Maldição. Precisava encontrar alguma alternativa para sair daquela enrascada. O casal ajeitava-se também, abotoares de cinto, de botões de camisa, cuidado com franjas ou mechas de cabelo. Eles logo viriam atrás de mim.
Avancei por aquele corredorzinho já apercebido pela presença da mulher que segurava o final de sua bituca de cigarro e despejaria esse descarte sobre um pálido cinzeiro ao canto do corredor, parecendo mais propício que ele estivesse do que um vaso de plantas ornamentais, por exemplo. Segui até o final daquela obra para ser surpreendido pelo profissionalismo de um segurança. Uniforme, mesa de escritório como se fosse um advogado ou atendente de alguma publicidade. Ele parecia esperar pela minha confusa chegada. Sem demonstrar na face alterações significativas, ao explicar para ele que eu queria saber se havia algum elevador no prédio, ele se adiantou por sua saleta até a abertura de outro corredor, paralelo, mas em lado oposto ao que caminhei. Era uma passagem relativamente de aspecto secreto. Quem poderia saber? Por onde meus pais saíram? Será que eram meus pais? Eram a representação de meus pais.
O outro corredor, esse interno, de ligação com a saleta do fiscal, era escuro, entranhas trevosas e uma aparelhagem tecnológica que irrompia luz; conjunto de câmeras e sensores que em nada combinavam com a fachada inexpressiva do prediozinho. Um hotel afastado, quase de campo. Quase mais rural do que urbano. Equipamentos de última geração, captadores de movimentos, câmeras espalhadas de cima a baixo do hotel. Ou seja lá o que fosse aquela construção cada vez mais macabra. Segui o referido segurança, ele de uniforme como um policial, cinto apertado, porrete ao alcançar das mãos, pendurado à cintura. Era melhor não me meter em problemas com ele, mas queria apenas ir embora. Surpresa para minha desconfiança, ele passou por aquela ante-sala de câmeras, dobrou para esquerda em outro corredor cercado de portas que deveriam significar novos quartos como aquele que eu havia entrado e meus pais saído, e finalmente demonstrou-me uma abertura em porta como a de um elevador. Senti determinado alívio, mesmo pressentindo que o desfecho estava longe do findar.
Antes adiantado ao meu caminhar, agora eu media os passos lado a lado com o segurança, atento para qualquer movimento suspeito daquele. A mulher, ao que parece, havia desistido de suas técnicas de sedução. Vá saber quanto dinheiro pode ter tirado de inocentes. Já não nos seguia, como conferi com olhadelas discretas para trás. Mas o acesso ao elevador não levava diretamente a um elevador. Era um imenso galpão, como o de uma indústria. Era como um ginásio, teto alto, horizonte aberto aos olhos até onde, finalmente pude focar, havia sim um elevador discreto ao fundo de toda essa magistral estrutura. Caminhamos lado a lado pelo galpão extenso, eu ainda atento a cada movimento do servente, que mostrava-se tranquilo, assobiava e se remexia quase contente. Notei bazares como os de bichos de pelúcia. Tudo era completamente inacreditável. Dezenas para centenas de animais de pelúcia esquecidos em galpão de elevador secreto.
À metade do caminho, andados uns 30 metros, comentei com o guarda que já havia visualizado o elevador e que ele poderia voltar para seu trabalho, sem mais delongas ou interrupções. Ele franziu a testa, movimentou sinuosamente as sobrancelhas, as rugas de seu rosto acentuaram-se, a resposta lhe tardou de vir à boca enquanto processava meu dito. Finalmente manifestou-se: - tudo bem.
Girou em seus calcanhares e retomava o caminho por onde vínhamos. Eu senti-me aliviado pela segunda vez, a primeira sendo o encontro com a portaria de elevador, embora aquela fosse falsa, agora eu estava próximo da verdadeira. Mas meu plano era esconder alguns animais de pelúcia, queria roubá-los, senti grande impulso por essa missão. Já estava ali, eles estavam abandonados, eles precisavam de mim. Era maníaco meu pensamento. Precisava dos apeluciados em meus braços, pensei em escondê-los sob a camisa, não caberiam, trariam muito volumes, eram senhores animais, quero salvá-los. Percebi perifericamente o olhar sobre meu ombro uma alça, direcionei os braços para trás e dei-me conta de portar mochila. Fazia sentido, deixei o hotel logo cedo para prolongado passeio e uma mochila sempre vem bem a calhar para eventuais compras, carregar câmera, enfim. Embora não lembrasse de maneira alguma carregar a câmera naquelas intranquilas ruas. Mas espaço na bolsa havia e eu poderia colocar quase uma dúzia daqueles bichos sem fazer peso, pois eram de pelúcia, além de concluir meu súbito plano de resgate.
Quando estava ainda escolhendo quais levaria, minha mãe surgiu de uma - a ironia - escada ao lado da porta do terminal elevador. Ela me alcançou aturdida e disse que eu precisava me apressar "que essa gente é louca, não temos o que fazer aqui, não devia estar aqui, vamos, vamos" e eu contei-lhe o plano de carregar animais de pelúcia, que eles precisavam de nós, havia ninguém vendo, poderíamos recolher vários, ela poderia ajudar, seria perfeito, custo-benefício, presentear amigos, levar para gente, que não fazia sentido os animais trancafiados ali, logo eu entusiasta das questões ambientalistas, contrário aos zoológicos e
Ela quase me interrompeu com um tapa, estava mais histérica, gesticulava com pressa, mas sem alterar a voz para que não ecoasse naquela estrutura povoada de animais de pelúcia, mas ainda assim muito aberta para o propagar do som até as outras partes do hotel ou seja lá o que fosse. Ela me agarrou pelos ombros, disse que deixasse de besteiras. Eu, em ultimato, em tentativa de convencê-la a capturar algumas espécies, disse que poderíamos doar para crianças, que seria importante presenteá-las e que não fazia sentido os bichos de pelúcia presos. Ela me olhou atravessada em expressão duradoura de uns longos quatro segundos. Então topou a amalucada ideia, mas disse para eu baixar por aquela escada ou elevador, que ela veio da escada, elevador não conhecia, enfim, mas que desse o fora o quanto antes. Ela preencheria a mochila, tomou-me a mochila, eu contrário à permanência dela, que se fosse inseguro para mim, para ela tanto mais, embora não perguntasse o que ali faziam, que contato tinham com o casal suspeito daquele quarto. "Seu pai lhe espera a duas quadras daqui", disparou em seriedade enquanto avançava para as prateleiras e mesas de serzinhos inanimados, amontoados como naqueles cassinos do gancho para pegá-los. Eu já estava uns três degraus mais baixo que o nível dos acontecimentos anteriores, quando notei que quatro funcionárias voltavam. Conversavam alto e riam, gargalhavam, uma mexia no cabelo de outra, uma mascava chiclete em crescentes bolhas logo estouradas contra sua própria face.
Minha mãe, vendo que elas se aproximavam, fez um último gesto para eu seguir, ir embora, zarpar dali. Após muita hesitação e desconfiança anteriormente, resolvi obedecê-la, mas completamente incerto do que sucederia. A escada estava íntegra, os degraus nem sequer rangeram a meus apressados passos. Não houve interrupção novamente na câmara de entrada do decrépito prédio. Nenhuma alma para encerrar meu aterrador check in naquela casa maligna. Minha mãe seria atacada pelas demais funcionárias? Minha mãe fazia parte daquele plano? Eram traficantes? Que tipo de práticas ou cultos ali realizavam? A noite estava cerrada, a umidade crescente tornava até o próprio solo escorregadio quando ganhei novamente as largas calçadas da rua, os terrenos baldios em volta formulando uma escuridão espessa, rompida a distantes postes e a iluminação de raros prédios, que começavam seu aglomerar de estruturas urbanas conforme eu avançava e o resfolegar representava o esforço praticado pelos passos em desabalada corrida.
Nem sinal de meu pai. Queria apenas retomar, de alguma maneira, perdido por aquelas ruas, já sem minha mochila que havia ficado com a representação de minha mãe, o caminho para o hotel. Pegar o restante de minhas tralhas, roupas, sapatos e voltar para o Brasil, sem me atentar ao congresso da promoção vencida pela BABEL. A promoção surgida em bar em que eu bebia solitário e tranquilo, o vencer da promoção, o congresso perfeito em datas logo após o resultado da promoção, minha facilidade com o idioma espanhol para ali congregar-me. Meus pais. Tudo parecia armado, simulacro, falso. Tinha a certeza que voltando para casa, eu não os encontraria na cidade.
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