O som das obras, do trabalho braçal, de meu pai em algum reparo pela casa, o som do menino vizinho, da criança brincando, dele ou das outras meninas da quadra em alguma brincadeira, esses sons me despertam do meu próprio mundo. É a realidade batendo à porta.
Um verso de 'A Dança de Tudo', do músico gaúcho Wander Wildner aponta que "sou parte do mundo e sou também o meu próprio mundo". Muitas vezes estou mais para dentro do meu próprio mundo do que à sorte do cotidiano real. É um refúgio, um casulo, uma caverna, uma cápsula de proteção.
Bebo duas cervejas aos finais de semana e escondo a terceira para a reciclagem que recolhe os materiais na segunda-feira. Nem sempre consigo descartar e acumulo algumas latas escondidas num pequeno armário. A vida traz várias falsidades à tona, mas a maioria das pessoas parece saber jogar naturalmente com isso. Fazem parte mais facilmente desse mundo ilusório. Não se questionam ou apenas usufruem dos rumos da maré. Aceitam rebaixamentos, humilhações, ofertas grosseiras, assédios de chefes em suas posições empregatícias.
Acabei de assistir ao filme 'Branquinha (White Girl), estadunidense recente, de 2016. A garota, meio que uma estagiária em uma agência de publicidade ou revista, ela se prepara para a faculdade em um bairro pobre de Nova York, passa a conviver com traficantes e tudo vira, literalmente, uma bola de neve. O novo namorado é preso, ela não devolve um pacote com drogas e tem que lidar com as milionárias consequências. É um filme bastante simplório em diálogos e para o entendimento do público, tudo muito direto, mas de certa forma verdadeiro, pelas tramas que o sub-mundo das drogas aprontam. É difícil dela sair desse trancafioso labirinto. Problemas com a lei, com os traficantes, com o advogado, distância para a vida que ela deve ter, em algum momento, planejado, de apenas seguir a maré rumo às aulas na faculdade. Com outros jovens de classe econômica média.
Fiz a comparação pela nota mais alta que eu havia atribuído ao que alguns consideram o pior filme do histórico francês Jean-Luc Godard. Em 1985, lançou a história de Marie (Eu Vos Saúdo, Maria), com alusões à passagem bíblica do nascimento de Jesus Cristo, traduzido para o cotidiano francês dos casais nos anos 1980. O que acontece? A jovem Maria é interpelada por uma representação de anjo Gabriel que lhe avisa sobre a concepção do filho. O namorado de Marie, Joseph, não acredita na versão e pensa que Marie foi infiel, porque ela não se deitava com ele, etc. A adaptação é uma grande ideia, mas as pessoas questionam a execução da obra. Gosto das interceptações nas cenas com filosofias e cenas da natureza. Mas o produto final realmente parece disperso, o que justifica as críticas de talvez ser a pior obra de Godard.
Na comparação entre a realidade dura e tão crua de Branquinha e a história tão viajada com quês de aterrisagem na Marie de Godard, eu estabeleci o parâmetro de como Branquinha está muito mais para o cotidiano real de tantos jovens (estudantes desviados de seus rumos, traficantes sem ter outro meio de vida após se lançarem ao tráfico), enquanto a vida da Marie de Godard está completamente suspensa pela subjetividade da obra, um voo filosófico (não dos mais inspirados de Jean-Luc Godard) e que os breves pousos ao chão fazem reflexão com a realidade em terra firme.
Branquinha está muito mais para o mundo, em que fazemos parte, embora essas tristes histórias nós ignoramos ou procurar ignorar no dia a dia. Jovens com traficantes, jovens que viraram traficantes, venda de drogas em boates, tribunais e advogados corruptíveis, acertos de contas entre os vendedores com tortura e não obstante morte. Há também breves críticas ao sistema no filme da White Girl. Em passagem do polêmico advogado.
No filme da White Girl francesa, na Marie de Godard, há muito mais elementos para a concepção do 'nosso próprio mundo'. Aspectos filosóficos, frases soltas que ficam emaranhadas ou boiando em nossa interpretação. Cada pessoa, com a sua vivência, as interpreta diferente. Enquanto a Branquinha projeta socos contra a face, em algo bem mais direto, produto típico das Nova Yorks e Estados Unidos, o francês tenta atravessar o âmago, como costuma fazer em suas obras. É bem verdade que pouco inspirado nessa crítica religiosa, provavelmente mais forte para a década de 80, mas que perde muito do efeito desejado em 2020.
Será? O assunto da internet foi o estupro da menina de 10 anos no Espírito Santo. Ela era abusada pelo seu tio há mais tempo, mas finalmente e tragicamente engravidou aos 10. Foi submetida ao aborto na cidade de Recife, após a negação judicial na sua terra natal. Em meio à toda confusão que se transformou a vida conturbada da criança, um grupo religioso - identificado como católico - ainda foi para a porta do hospital para protestar CONTRA a criança e o médico responsável pelo aborto. Movimentos feministas de Recife se organizaram pela justiça e para garantir o procedimento para a criança abusada pelo tio.
Questionamentos do poder da religião. Uma obra francesa tão distante em temporalidade e contexto, será que ainda tem validade em suas críticas em nosso Brasil? As pessoas conseguem apanhar os frutos das altas árvores de Godard? Conseguem apanhar os meus frutos nessas linhas? Mais importante do que apanhar frutos, é ver as pessoas lutarem pela justiça no dia a dia, como é o caso de garantir que a jovem estuprada tenha seu aborto concedido. Ela, que só precisava remover aquela parte do crime de seu organismo, e não ser mais criminalizada por isso. Parece que fundamentalistas religiosos, fanáticos que se dizem 'pró-vida', parece que se importam mais com criminalizar um aborto do que o estupro e o estuprador.
Se dizem pró-vida, mas não ligam para o trauma da criança capixaba. Se dizem pró-vida, mas, mesmo de máscaras, ó, hipocrisia, de máscara dão as mãos em frente ao hospital para bloquear a passagem. E as mais de 107 mil mortes NO BRASIL provocadas pelo novo coronavírus. Não ligam para essas vidas? Não ligam para a proliferação do vírus em seus ridículos atos? Criminalizam profissionais da saúde, talvez a maior negativa surpresa que tenho durante essa pandemia. Esperava eu que os salvadores por meio de processos cirúrgicos e receitas médicas estariam livres dos gabinetes de ódio, mas não estão. Médicos e enfermeiros condenados pelo tribunal genocida e seus diabólicos seguidores.
Mais um episódio triste na contemporaneidade do nosso Brasil. Por fim, que a criminosa Sarah Winter seja condenada. No meu próprio mundo, no dentro de minha cabeça, já está. Resta que o mundo à parte, o aí de fora, esse tão inalcançável por tantos momentos, a condene. Desejo, desde as arestas do âmago de meu próprio mundo, o pior possível para Winter do lado de fora. Desgraçados.
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