04/07/2020

Filas de Banheiro

Sempre gostei de ser descritivo. Gosto de descrever. Gosto de observar. Um bar e um copo. Companhia é dispensável. Comigo mesmo, com ninguém na frente, posso observar. Posso percorrer os olhos pelo espaço, câmera em movimento travelling. Posso de repente pensar onde agir, se é que é necessário agir. Às vezes é só observar mesmo. Para descrever depois.

Gosto de descrever o que faço também. Fragmentos autobiográficos baseados em minha vivência, rotina, atividades, pensamentos, discursos, filosofias. Sinto que se soubesse realizar mais tarefas, elas estariam mais presentes em meus textos, sim, porque adoro descrever o que seja. Descrever processos culinários, dificuldade de estacionar, viagens em janelas de ônibus, passeios ciclísticos, processos de trocar fraldas, de escolher a roupa para uma cerimônia, de visitar meus pais, de visitar meus amigos, de comprar remédios, de chegar a eventos, como estádios ou teatros ou concertos ao ar livre. Levar o celular para o conserto, deixar a filha na escola, buscar a filha na escola, procurar uma estação de rádio. Ser criticado o quão brega é procurar estações de rádio, intermináveis chiadeiras antes de uma sintonização certeira. Milagre da propagação das ondas.

Filas de banheiro. Talvez uma das experiências mais comuns e imprevisíveis sejam as filas de banheiro em eventos, sobretudo festas. Imagine o open bar. A cerveja entrando, copos e copos, diurética e abrindo passagem entre os órgãos, filtrada e pronta para abandonar o organismo. Ela quer sair e tem pessoas, às vezes dezenas delas, à sua frente. Haja força de vontade, aguente, guerreiro. O banheiro masculino, a impaciência, a torcida pelo companheiro que passos dianteiros rumo à liberdade, a aproximação com a privacidade de sua descarga.

O sonho com o mictório, a água corrente, a privacidade parcialmente violada, olhares espichados, olhares recolhidos, instrumentos espichados, instrumentos recolhidos, funcionamento fluente, funcionamento contido. Psicológico. Pressão. Presenças demais. Barulho demais. Desconcentração. Foco em se livrar da missão o quanto antes, antes de ouvir um "como é que é, camarada?!".

É um ambiente de possíveis amizades. De possíveis brigas. Amistosamente pode-se iniciar qualquer conversa com "bah, mas que demora, né" e receber a confirmação dos companheiros em volta. Soldados da mesma trincheira. Cada um lutando contra seu próprio organismo. Algum mais desesperado se dobrando, não vai aguentar o sufoco da contenção urinária. Força, amigão. Já é amigão, já estamos juntos nessa, vamos superar. Voltarmos para elas. Tu voltares para ela. Eu voltar para a minha. Quando há. Se não há, depois eu busco uma bebida, pra quando quiseres repor. Tu vai sair dessa, cara, já passou por piores. Te lembras? Não te lembras? É porque tudo é o agora e agora tu precisa expelir essa urina. Pelo amor de Deus, homem necessitado, homem ferido, ele precisa passar. PAM PAM PAM abre essa porta, cara, ele não vai conseguir.

Assim se arrumam improváveis heróis, assim surgem vilões. "Foi mal aí, tava apertado, achei que não iria acabar." Ah, saia logo. Quando não deixam presentes piores. Quando as manifestações gástricas não permanecem mesmo após a evacuação da pessoa. Quando não é necessário subir a gola da camiseta para conseguir ampliar a sobrevivência. Nem sempre a chegada ao vaso ou ao mictório é o fim da missão, como percebem.

Importante também ressaltar a área de respingo. Tempos, tempos de distanciamento social controlado. Os mictórios já previam isso. Pela educação, pela higiene, pela segurança. Respeitem a área do respingo. É mais essencial do que a distância regulamentada dos caixas eletrônicos. É um código de ética da comunidade masculina. Não há faixa amarela que restrinja o avanço, mas convenhamos, por favor, faça o favor. Além do mais, Arnaldo Cezar Coelho sabe o quão clarividente é a regra de que, se há mictórios vagos, use com a distância de pelo menos um do sujeito que está utilizando simultaneamente. Não vá querer fazer vizinhos desnecessariamente. Respeitem a distância propícia entre suas calças jeans, seus cintos de couro. Seus sapatos posicionados em horários diferentes.

As filas de banheiro. A política, o esporte, a hora certa, o cálculo do "vai dar", "não vai dar", "pera, vai ter que dar" e tudo isso, o turbilhão dos pensamentos sobrepostos. As pichações nas paredes, nos ladrilhos, nas madeiras desde a fila. Nomes, tags, jogos da velha, xingamentos, telefones, whatsapp, quem tem tempo para isso? Quero apenas usar o banheiro. Quero ver a menor quantidade de nucas possível na minha frente, quero a fila indiana dos clipes de Pink Floyd. Quero que maquinalmente todos consigam para que eu possa conseguir. Falso altruísmo, quero agora apenas a minha liberdade.

Quero liberar o disparo, quero acertar o alvo, acertar a cesta pela inibição da pressão que se esvai. Quero o regozijo de concluída etapa, quero procurar novos nomes nas paredes quando já estiver liberto do que me incomodava. Quero desejar aos demais a mais sincera boa sorte, quero voltar para onde a música é mais alta, para onde as companhias possam me ouvir, ou não me ouvir, tamanha a intensidade em decibéis musicais. Quero repovoar meu copo.

Quero torcer para que a pia esteja funcionando e nenhum neandertal tenha causado prejuízo à casa. Quero testar o sabonete líquido, quero o sucesso no puxão do papel-toalha após o enxague, quero o bom senso de quem providenciou vasto e necessário cesto de lixo para as mais diversas emergências.

Quero saudar os companheiros vitoriosos do campo de batalha, na retomada do corredor de acesso. Triunfante, ainda mais após a ajeitada no rosto, no cabelo, no que o espelho pediu ao final do encontro. Em banheiros que já visualizaram tantos acontecimentos sexuais ou manicômicos, ilegais e criminosos, ou simplesmente aliviadores.

Que se aperte, que cruze as pernas, que se dobre de desespero urinário quem não tenha história para contar sobre as filas às portas dos banheiros. Mais do que um rogo de praga é um desejo para contribuíres com esse acúmulo de histórias possíveis. Talvez eu recolha amostras de cada um contribuinte, anônimo ou não. Pseudônimo ou não. Emergências, diarreias, reencontro com conhecidos, descoberta do amor de sua vida. Alguma coisa deve ter acontecido em filas de inescrupulosos banheiros lotados. Compartilhe sua experiência.

Banheiros Públicos – Brasília Shopping – Arquiteto Daltônico
Shopping de Brasília. Bonito, né? 

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