Como a votação pelo toque de recolher, proibindo os moradores de transitar após às 21 horas, ficaria para a próxima semana, Karina pegou a bicicleta na garagem e contou nada para a mãe. Abriu e fechou o portão grande no sigilo, aproveitando que a graxa silenciava o vai e vem da imensa boca de ferro. Olhou para ambos os lados e apreciou a solidão, ninguém à vista, nem o guardinha do bairro, sr. Rubens, que poderia ter deixado a guarita para bandear por aquela rua deserta. Preferiu ficar no deserto a duas quadras de distância. Velho Rubens que já havia sido preso e prometia a si mesmo e a quem quisesse ou pudesse ouvir que não voltaria para aquela jaula. Até considerava o suicídio, mas nada de repartir cela com dezena de detentos, acusados e condenados pelos mais diversos crimes. Ele nada tinha a ver com essa vida mais. Se empenhava na função de proteger aquelas quadras, que nessa época, de fato, haviam se desertificado. Nenhum transeunte naquela madrugada, quase 1 hora da manhã. O trânsito de carros também estava bastante reduzido. Olhos duplos de faróis eram raridade, um par a cada quatro ou cinco minutos.
"Depois eu volto, seu Rubens", falou para si mesma. Calçou a bicicleta e começou a pedalada. Karina pressentia a necessidade desse momento. Espairecer. Ela não vinha saindo de casa nas últimas semanas por conta dos decretos. Estava sem aulas presenciais na História, sem EaD, estava sem o namorado, que já estavam a ponto de terminar o relacionamento de quase dois anos. Ela precisava desse tempo com ela própria. Agradeceu que a bicicleta fosse escura e não a rosa, que seu pai insistia tanto. A bicicleta era sua companheira havia pelo menos uns 7 anos. Alguns pequenos consertos, ajuste na correia e uma desregulada nos freios, mas nunca deixou de ser a sua guia pelas ruas da cidade. E Karina cuidava bem de sua parceira, calibrando os pneus sempre que possível, ao menor anúncio de que problemas poderiam vir.
Karina pedalava agora para fugir dos problemas. Considerava que o país havia entrado em uma maré, em uma enxurrada de infortúnios com a acusação e cassação dos direitos políticos de Dilma Vana Rousseff em 2016, a 36ª presidente do Brasil, a primeira mulher. Deposta. Na época, Karina não havia percebido dessa forma, mas os primeiros semestres na História lhe indicaram isso. Ela iria começar o terceiro período de um total de oito. Era o segundo ano na Universidade pública. Universidade que também estava bastante ameaçada pelos últimos desdobramentos. "Justo agora que é minha vez", ela havia pensado. Prerrogativas de greve, pelo mau repasse de verbas, pela má remuneração de funcionários desajustados ao subimento dos preços, falta de incentivo aos pesquisadores e pesquisadoras, mas motivos maiores no país, no afeto à saúde pública, de um modo geral. Turbilhão de acontecimentos para a jovem Karina Bianca.
Levaria ainda mais três semestres para entender que estava se livrando de um relacionamento abusivo. As amigas da sua idade não saberiam dizer, ela mais adiantada do que a maioria delas. Talvez a Sônia soubesse, mas a Sônia já não conversava com Karina desde que esta havia entrado para a Universidade. A Sônia tinha passado por isso mais de uma vez e começava a entender os efeitos devastadores ainda aos 16 anos. A Karina, bom, a Karina estava em seu primeiro relacionamento fechado, primeira atualização de status nas redes sociais, sobretudo o Facebook, que deixa mais evidente se está ou não está compromissada, se está ou não está disponível, porque diz ali direto no perfil. Nas outras era necessário procurar fotos. Mas logo se sabia que Karina estava com Maicon.
Mas logo não estariam mais. Ele cada vez mais frio, ele cada vez mais ciumento e, ao mesmo tempo, cada vez mais distante. Karina não entendia bem o companheiro, o que se passava com ele. Gostava muito de Maicon, mas ele não contava sobre o que o atingia e assim a relação se desgastava percentualmente a cada mês. Karina, por outro lado, se entendia era com a bicicleta. Isto sim. Já havia contornado os paralelepípedos pedregulares, imprecisos, desnivelados, desleixados das ruas próximas à sua casa e avançava com maior claridade, maior iluminação pública por uma avenida de constante trânsito sobrecarregado, mas que respirava mais calma pelo horário e pelo contexto todo já relatado. A ciclofaixa não havia ficado nos conformes anunciados, mas servia para escoar seu passeio de absoluta necessidade.
Talvez tenha sido ali, na esquina de um restaurante em que costumavam almoçar aos sábados ou jantar com Maicon que ela decidiu encerrar o relacionamento duradouro com ele. Passou pela faixada vazia, anunciando ainda alguma promoção de frango e marmitex com entrega gratuita na região da cidade, nada sentiu pelo restaurante, nem por Maicon, por suas lembranças antes calorosas por ali. Até simulando coisa maior, como se fosse casamento, ele queria que ela usasse anel de namoro com ele, fora ali, mas não mais. Nada significava no momento. Maicon nem sabia quem era Karl Marx, nem Martin Luther King, muito menos sobre Angela Davis, ou o importante movimento zapatista no México, ou sobre as revoluções por sovietes e coreanos. Disso ele nada queria saber. Disso ela tudo queria entender.
Pra fora de seu bairro, as ruas e a iluminação eram melhores. Ela e suas pernas agradeceram pela redução considerável no número de solavancos e sobressaltos por uma melhor plenitude das calçadas e do asfalto do meio das ruas. Quanto ao ajuste no funcionamento dos postes, confessa que preferia o maior anonimato e a maior solidão da escuridão que havia transpassado.
Pensou se sua mãe daria por falta da filha naquela noite, até que regressasse e tentasse, no mesmo sigilo de espiã, recolocar a bicicleta onde estava e ela devidamente alojada com a cabeça sobre o travesseiro. Seu irmãozinho tinha apenas cinco anos e já era fruto do segundo casamento da mãe. Dormia relativamente cedo, mas daqui alguns anos já estaria crescido e gamer para invadir madrugadas atrás da diversão de um playstation entre o 4 e o 5. Sabia Karina que para sua mãe seria mais fácil investir dinheiro em vídeogames do que outras atividades para acalmar o insaciado Lucas.
Sobre o relacionamento de sua mãe, era o terceiro dela após o divórcio com o pai de Karina, o primeiro em que a então solteira senhorita Alves sentiu confiança o suficiente para se unir novamente, juntar as escovas de dentes, como se diz. A gravidez para ter o Lucas deve ter sido como um dos solavancos nos passeios de bicicleta de Karina Bianca, mas, no caso da união ainda instável, como um ultimato para a junção de sua mãe com seu mais novo padrasto. Notava que o relacionamento deles se encaminhava para abusos e violência, porque era mais fácil notar isso quando, talvez no fundo, já fosse o desejo dela de que ele não mais vivesse com sua mãe, que ela poderia ser mais independente e mais feliz, estar melhor sozinha do que com ele. E também porque era mais notável, mais evidente onde ela não colocava seus sentimentos, emoções que mais confundem do que transcendem a transparência da resposta.
Karina sabia que não eram normais os cansaços e chateamentos de sua mãe, que ela estava sofrendo entre quatro paredes e só evidências físicas, algum hematoma ou lesão maior para comprovar até onde o padrasto poderia ir. Do passeio de bicicleta, sob o luar e absorvido o ar mais limpo daquelas noites de menor trânsito, ela sentia-se pronta para retornar, encarar novamente a piora das calçadas, a ausência de iluminação para torná-la novamente anônima. Apesar de ter a chave para a resposta sobre a situação da mãe antes da sua, quem primeiro resolveria seus problemas era ela, desintoxicada por seus passeios de ciclista. Só torceria para que não fosse tarde demais para sua mãe... para ela e para o Lucas, para a família, enfim.
Dobrou para a derradeira rua de sua casa e avistou o senhor Rubens. O guardinha notou os olhos arregalados da jovem, que sentia-se em apuros pela descoberta de sua saída noturna. Rubens apenas sinalizou com o indicador que o melhor a fazer era o silêncio. Quando cruzaram-se, a menos de 10 metros de distância, ele confidenciou. "Sua mãe precisa de você".
Abriu o portão com o mínimo possível de ruído, certificou-se do exato estacionamento da bicicleta, cuidadosamente desviando do carro do padrasto. Parece que sua mãe não notou sua saída naquela noite. Mas, pelo olho levemente arroxado dela, o padrasto havia percebido a ausência. No café da manhã seguinte, Lucas, sobre o ocorrido, apenas sentenciou:
- Estão muito quietos... Ninguém quer mais geleia?
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