30/08/2018

Todo mundo o tempo todo

Prometi, ao publicar o volume 1, um volume 2 sobre coisas, eventos, atividades extremamente importantes a nosotros, sejam comemorações ou rituais fúnebres, e que são ignorados pelo restante da população.
Outro pensamento formulado é sobre o distanciamento que as cidades provocam. As cidades grandes. É só tentar associar aos funerais indígenas e como as aldeias entram em estado de luto e de respeito, ou mesmo de choque para os próximos da vítima. Situação não vivenciada nas anônimas ocorrências do cotidiano dos maiores centros. Mal conhecemos nossos vizinhos, novos comerciantes de nossas zonas, pessoas de nosso bairro. Apartamentos ocultam e guardam as mais diferentes e inexploradas personalidades. Talvez apenas notamos, se é que notamos, a ausência após longos períodos, para aí sim descobrir que Fulano se mudou de endereço ou Ciclano faleceu de alguma causa desconhecida.

Percorro aqui a continuidade de episódios que ilustram o desconhecimento ou a ignorância (de não ligar, ignorar no modo mais grosseiro da palavra!) dos acontecimentos que muito significam a nós. Após a relatada conquista do Farroupilha e o exemplo do cemitério, que inclusive fica nas proximidades da sede do clube, vamos a outros exemplos: formaturas.

Na cidade interiorana que habito, é bem possível que os transeuntes ou motoristas espiem para o Theatro que recebe muitas das cerimônias. Apontar o nariz e procurar por conhecidos nas togas e capelos é quase uma obrigação. Procurar ao menos distinguir qual o curso que está recebendo novos profissionais em solene noite de completude.

Porém, ao depararmos com esse exemplo de formatura em capitais, o panorama pode ser outro. A preparação em tal dia especial começa muito cedo. Para as e os necessitadas(os) de mais tempo de preparação, escolhas de look, definição de esmaltes, maquiagens, penteados com tamanha antecedência. Dias ou até meses antes para diminuir a sempre presente margem de erro. Uma formatura tem lá seu preço e o investimento precisa colher de retorno na data da festividade. As parcelas que servem para decoração, produtora, fotografias, coquetéis e as mais diversas imagens querem uma exigente troca, uma recompensa no estimado dia que chega. Parece distante à certa altura do calendário, porém sempre se apresenta.

Quando a data entra no holofote do X da questão, não só o formando vai estar preparando-se para momento importante de sua passagem vital, mas os familiares e amigos também arrumam seus visuais, procurando aquela caixa de sapato que estava ao fundo do guarda-roupas ou conferindo se o vestido de festa de aniversário ainda está digno de novo uso. Consulta de preços para maquiagem ou a desistência do trabalho de terceiros para dedicar uma hora em casa nessa atividade.

As pessoas se dirigem rumo ao local do evento, que, como citado acima, pode ser distante em cidades maiores. E este é um dia que leva a cabeça a pensar em tantas coisas podendo gerar uma virtuosa introspecção, situação a qual eu mesmo me propus a quebrar o gelo, como se diz na linguagem popular. E assim acionei mais vozes a serem escutadas no carro enquanto nos aproximávamos da cerimônia. Um bom passatempo para esquecer minhas mãos que suam constantemente ao contato do tecido dos ternos e que me fazem utilizar quantidades (quanto mais melhor!) de lenços de papel e de algodão. 100% algodão sempre que possível.

Eis que a viagem, demorada que foi, também fala muito sobre talvez o principal aspecto que me deixa reflexivo sobre essas situações de oásis ou trevas de luto em meio ao caos alrededor. Cada nave ocupada por motoristas com ou sem tripulantes tem uma história diferente, um ponto de vista distinto e uma opinião diversificada a respeito do dia. Pode ser só mais um sábado qualquer - como o nome daquele site de tirinhas. Pode se tratar de um sábado difícil pelas dívidas, aluguel atrasado, problemas com um carro recém batido, com uma pensão não paga, com um relacionamento descarrilando, com um parente próximo enfermo. Ou pode ser o grande sábado de uma formatura aguardada faz anos. Mas entre veículos que aqui dobram ou ali seguem, não fazemos ideia de quem ocupa os bancos ao lado. Abastecido da leitura de Medo e Confiança na Cidade do polonês Zygmunt Bauman, faz mais sentido entendermos o desconhecimento e a ignorância que temos em relação aos ocupantes próximos. Não sabemos com quem pegamos ônibus, trens e trânsito em geral. Perdemos oportunidades de contatos que possam ser importantes, mas nos sentimos protegidos de potenciais agressores, maníacos, dependentes químicos e outras formas de sentir-nos ameaçados.

Assim como nada sabemos dos outros Fox, Hyundai, Gol, Peugeot, Mercedes, Fiat, nada sabem de nossa expectativa pela formatura. Beira-nos a dúvida também outra possibilidade. Caso soubessem da importância referente ao dia, dariam passagem, estimariam bom proveito, presenteariam com mensagens de incentivo? Ou apenas diriam e eu com isso, tenho nada que ver, tenho meus próprios problemas, tô com mais pressa que vocês.

Enfim, em meio a encontros e desencontros citadinos, pessoas mais ou menos gentis, em dias mais prazerosos ou penosos, concluem-se essas missões repletas de cláusulas, barreiras, infortúnios, imprevistos, desvios e diferenças no que se pensa e no que se faz.

Continuamos caminhando anonimamente, cumprindo apostas de caminhar 20 quilômetros, rodando em carros fabricados pós-2011 como motoristas de uber, recebendo e cruzando por trabalhadores e desempregados, mães, pais, filhos e filhas, eleitores de esquerda ou de direita, pugilistas de nossas próprias e desconhecidas batalhas. Como em canção interpretada por Ney Matogrosso, todo mundo o tempo todo - mas sem você ver.

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