05/05/2018

Morros

Era um morro. Naturalmente era um morro, relevo esculpido pela mãe geografia desde muitos e muitos séculos. Também é lógico que trata-se de um morro ocupado. Famílias e famílias periféricas, mas visíveis, talvez de binóculos, aos olhos do reinante asfalto, que no Rio de Janeiro tem seu reinado no ponto mais baixo.

Mas o morro tinha lá seus impérios. Lugar melhor para alguns comércios não há. E os que sabem, se escoram e se encorajam nisso não perdem chance. Ocupações para o bem ou para o mal. Ou além disso, pela sobrevivência. Algo que orgulharia a teoria de filósofos alemães que jamais viram tais cenas e nem as imaginavam no europeu século dezenove.

De fato, era um morro. Um morro que aqui não representa nome. Um morro desses que o turista conhece olhando lá de baixo para cima, com olhos arregalados, a boca abismada em formato de caverna e, se não é assim que observa, é porque teme representar demais a expressão turística, chamadora de atenção de quem tenta se aproveitar deles. Morro desses que o estrangeiro a essas terras observa como uma junção de peças muito semelhantes, como um quebra-cabeças, mas que tenta, ao mesmo tempo, registrar as diferenças, entre uma casa de tijolos à vista, outra pintada em cor de rosa, outra na mão de tinta em verde limão. Tenta observar uma bandeira do Flamengo pendurada, umas peça de roupa em outra corda, uma bicicleta ali jogada ou uma bola de plástico instantemente abandonada. Tenta entender como a fiação funciona naqueles enroscos que desafiam a lógica e a física. Desafiam aos vizinhos descobrir quem é o responsável quando a luz se vai ou quando o incêndio atinge uma dúzia de barracões. Os desafios do dia a dia.

Cada vez mais convencido de que o ser humano é adaptável. Pra quem mora ali desde a infância, nada disso é cenário para bocabertices, para espanto, caras pasmas ou a mão trêmula tentando sacar dali fotografia com o celular ou com a Canon ou Nikon. Um casal de jornalistas ali vivia há cerca de um mês. A primeira semana sempre é a mais difícil. O trabalho de conseguir alugar um espaço de dois quartos, uma cozinha e um banheiro quase comunitário com os vizinhos não foi tranquilo aos olhos dos controladores.

A adrenalina e a ânsia da reportagem falavam mais alto. Gritavam e abriam espaço em seus peitos. Precisava ser feito. O início era como se adaptar a um quarto de hotel, com suas peculiaridades estudadas nos primeiros dias, nos primeiros acenderes do fogão, nos primeiros banhos para regular o pouco que podia ser feito com a água do chuveiro. Armazenar água da chuva para fundos de emergência, saber a intensidade da descarga do vaso sanitário. Entender o horário e os incômodos que os vizinhos poderiam causar.

Preconceitos à parte da sociedade dos bairros abaixo, nada ali estranhava muito. Crianças brincam e fazem barulho, naturalmente. Das mais ricas às mais pobres. Experiências de observar crianças haviam tido, embora, casal junto há menos de quatro anos, não tinham filhos e, nos custos de tempo e estresse na dedicação ao trabalho, não pensavam e mal discutiam essa hipótese, mesmo para um futuro que não sabiam se existiria.

Se conheceram ao final de suas faculdades e a oportunidade de trabalhar juntos uniu-os de vez. É possível que já haviam se visto nesses rios de janeiros de zonas sulistas, mas somente os encontros para a definitiva oportunidade de trabalhar no mesmo ramo meses depois causaram uma união mais estável. Dividiam um apartamento anteriormente, com alguns custos de auxílio das famílias, pois jornalista tinha um alto custo com internet, telefonia e outros serviços. Até mesmo com deslocamentos com transportes, que, mesmo nos aplicativos novos, somavam uma nota desconfortável ao final dos meses.

Aquele espaço no morro era para uma produção que ganharia destaque em chamada e páginas e páginas de uma revista. O veículo entrava em contato com eles praticamente diariamente. A negociação para obter o lugar estratégico demorou mais tempo do que passariam ali. Os contatos com os controladores eram seguidos. Queriam saber a intenção da reportagem, saber um pouco sobre suas identidades e histórico recentes, o que foi passado em resumo bastante resumido, mas sem invenções ou ocultações que poderiam complicar a pele do casal enquanto estivessem lá em cima.

Conforme avançavam no currículo que os controladores desejavam, a isenção de pagamento foi conseguida. Era um dos raros espaços desocupados anteriormente entre as construções tão adjuntas do morro. Famílias e mais famílias os cercavam. A bem da verdade, o ponto de vista antropológico os interessava muito. A parte criminalística deixava de ser o ápice da reportagem durante vários e vários dias. Muitas vezes o olhar direcionado ao conhecimento daqueles humanos preferia fotografar as crianças em brincadeiras rudimentares de futebol, nas versões de altinha e em gols improvisados, as quase extintas bolas de gude, ou mirar o deslocamento das constantes lavadeiras, que pareciam carregar e trabalhar com mais peças do que caberiam em pilhas ou cabides no aperto dos quartos das casas.

E no que se conseguia capturar de seus assuntos, as palavras, os discursos e os diálogos inalados de sabão iam dos homens, dos ex-acompanhantes, dos bêbados da região, da novela, algo mais vago sobre futebol, sobre o desempenho dos que estudavam e o lamentar dos que não estudavam naquelas famílias tão jovens, de mães adolescentes a crianças que começavam a se encarregar do perigoso e mortal tráfico.

Esta era uma das palavras as quais evitavam a todo custo. Certas palavras pareciam perigosas e distintas até mesmo para colocá-las no papel, das anotações aos registros do notebook. A sensação era de cometer um grande delito e que sempre alguém os observava como se fosse o Cristo Redentor, ainda mais ao alto, a aconselhar que utilizassem sinônimos ou tomassem o extremo cuidado naqueles delicados assuntos.

Também pelo receio de abordar esses temas é que muitas vezes o cotidiano das famílias mais simples, necessitadas e pouco estruturadas tomava espaço nos registros, nas anotações e nos álbuns construídos. Aprendiam o nome de alguns vizinhos, embora a maioria demonstrasse interesse, mas receio de se intercomunicar por muito tempo. Qualquer estouro em relação aos jornalistas poderia acarretar em problemas entre os mais próximos, como tortura, ameaças e necessidades de confessar até o que não sabiam.

A relação com a vizinhança foi um dos tópicos bastante abordados durante as conversas para definir o aluguel. Muitos dos moradores, principalmente os mais antigos e de confiança dos controladores, foram indagados sobre a possível presença dos jornalistas ali em dia e noite. Uns torceram o nariz, mas a maioria foi aceitando. A liberação da concordância foi acontecendo em processo de confiança dos primeiros dias. Mas, para os jornalistas, a sensação era sempre de que alguém os observava. E era possível que realmente os observavam nos mais diferentes horários e locais, como na ida aos mercadinhos da zona ou da cerveja que Gabriel arriscava beber nos botecos, colhendo mais alguns depoimentos dos frequentadores, uns mais exaltados ou confessores após os pileques.

Gabriel era mais moreno e Patrícia era muito clara. Ela atraía olhares masculinos, mas teve dificuldade era em convencer as lavadeiras, as jovens mães acompanhadas ou solteiras de que sua presença era meramente trabalhista. Não ia lá para roubar homem, muito pelo contrário, afirmava.

Os preconceitos correm fácil por esse Brasil, talvez tão fáceis como circulem os córregos da vasta bacia hidrográfica de Norte a Sul, ou fáceis como as valetas e os esgotos a céu aberto. Ou fáceis como o voo das veranistas andorinhas e outras aves nativas. Tão fácil quanto a fumaça do cigarro no bar que Gabriel frequentava às vezes com Patrícia. Tão fácil quanto a mercadoria financiadora descia morro por meses sem a mínima interferência estatal e o controle era todo daqueles que intermediavam pela população, ameaçavam e empunhavam suas regras e seu armamento por vezes à luz do dia.

Faltavam poucos dias para fechar um mês de trabalho. Eles não projetavam estender muito mais a jornada por aquelas bandas, conforme inclusive haviam acordado com os controladores da região. Eram 28 dias completos na missão para a revista, mas então houve a noite derradeira. Foram 28 dias completos, mas na vigésima oitava noite...

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