20/12/2015

A necessidade do antagonista

O futebol-arte traz a admiração dos aficionados. É bonito o carregamento da bola de pé em pé, de um lado ao outro. Com passes precisos, dribles e, de preferência, com o elemento surpresa ou de improviso também na finalização, a vencer o arqueiro adversário. Assim é a síntese da história de um futebol bonito, encantador, a versão preferida da maioria. Porém, para caracterizar uma disputa, é necessária a versão do antagonista.

No futebol a nível mundial, a evolução da prática resultou em algumas peculiaridades comuns ao estilo de alguns países. O primeiro parágrafo descreve um jogo de gosto tipicamente brasileiro, da ginga, do malabarismo com a bola enfeitiçada. Na Alemanha, o futebol técnico e coletivo, a divisão de responsabilidades. Na Itália, é firme a marcação e alguns dos principais italianos na história da modalidade são exatamente os defensores. Recentemente, zagueiros como Nesta e Cannavaro, além do goleiro Buffon.

Na América do Sul, a força do antagonismo ao futebol-arte é grande. Pode haver argentinos e uruguaios de extrema habilidade técnica para desfazer o nó das defensivas, mas grande parte dos meninos que crescem nos bairros de Buenos Aires e Montevidéu, prima por um estilo de jogo considerado feio pelos demais. A marcação mais firme, a chegada mais forte, a catimba. Tudo isso faz parte. São os antagonistas, como não foi diferente na versão da final entre Barcelona e River Plate. Embora o Barça carregasse um ataque latino-americano, com um uruguaio e um argentino, o platenses do River possuíam a dura e árdua missão de pará-los. Não foram páreo, apesar dos mais pesarosos esforços. Missão praticamente impossível.

Ao longo das gerações que brincam de chutar a bola para lá e para cá, é necessário que exista alguém que faça o trabalho sujo. Alguém tem de fazê-lo. Na Argentina e no Uruguai, assim como em períodos do Rio Grande do Sul, o trabalhador dessa seriedade, às vezes, é o mais reverenciado. É o volante cão de guarda, o zagueiro xerifão, o goleiro orientador.

Nos selecionados nacionais, Argentina e Uruguai conservam figuras como o argentino Mascherano ou o zagueiro Diego Godín. O primeiro, argentino, inclusive também campeão na esquadra do Barcelona, como cão de guarda, como segurador das pontas em muitos lances, precisando, como dizem, abrir a caixa de ferramentas quando necessário.

O próprio delantero uruguaio Luis Suarez conserva um pouco do antagonismo aos moralistas. Suarez não perde a chance de golpear e provocar adversários. Batalha, luta incessantemente, simula, gesticula, reclama e recicla no ramo das catimbas para não ser pego pelos olhares da arbitragem. É um grande ator, um antagonista muitas vezes e protagonista, artilheiro, em outras.

Suarez é a cara do Uruguai desfigurado pelo holofote do futebol europeu. Os maiores clubes do país, Peñarol e Nacional, não conquistam a Copa Libertadores para chegar ao Mundial desde a longínqua temporada de 1988. A seleção Celeste venceu as Copas do Mundo de 1930 e 1950, e dificilmente repetirá o feito, apesar de repousar como - ainda - a maior campeã de Copas América, principalmente pela gordura construída em outrora.

Suarez pode ser visto negativamente por alguns adversários, como digo, os moralistas. Eles aplaudiram à suspensão imposta a ele e a todo o Uruguai na Copa do Mundo de 2014. O selecionado celeste não conseguiu manter-se nas disputas após a sansão imposta como consequência da mordida. Apesar de criticarem o estilo de Luisito, ele é um nome ideal para jogar ao lado. Batalhador, gladiador das frentes. Joga por ele próprio, sempre com ampla vontade de balançar as redes, de construir, de contribuir. Sempre buscando o melhor a ele e, consequentemente, aos companheiros. De Barcelona ou de todo o Uruguai.

E que digam, aos que questionam algumas artimanhas feitas dentro de campo, que mal há nelas se são pela vitória maior de seu time e de seu povo? Às vezes, como é o futebol globalizado, que mal há nos investimentos latino-americanos de buscar vencer a todo custo, contra um futebol europeu que rouba talentos e se fortalece estruturalmente e financeiramente, em retroalimentação?

Há vários latino-americanos e africanos no futebol europeu, mas quase nenhum europeu no futebol da América do Sul ou da África. Isso explica muita coisa.

Por fim, destaco que a resistência da competitividade do futebol vem através da resistência dos que jogam com personalidade, com a velha gana de vencer custe o que custar. Dos que não se entregam, dos que fogem dos padrões em que a modalidade preferida no planeta insiste em se enfiar. Precisamos da oposição. Precisamos do antagonismo.


As torcidas também se esforçam para manter o sentimento alheio à padronização. O futebol moderno não é o caminho para muitos deles
(Foto: Ediane Oliveira)

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