05/01/2015

Camada de VALência

Pelo telefone, os parentes confirmaram que viriam passar a tarde. Havia um porém: a filha de um amigo da família. Com a resposta afirmativa de minha mãe, ela também estava escalada a comparecer ao período vespertino daquele 4 de janeiro.
 
Tarde de muito calor e com minhas escalas de cobrir a Copa São Paulo de Futebol Júnior. Passada a tarefa referente ao primeiro jogo, pude desfrutar um pouco da piscina. A menina tem 5 anos e brinca com minha tia, que ela, mesmo sem laços sanguíneos, chama de vó. A mãe de minha tia, minha tia-avó, é chamada de bisa. Minha prima, por fim, é madrinha dela. Sou só o Kiko.

O amigo Kiko é meio sem jeito para essas coisas. Lê demoradamente o jornal e, após algumas insistências, vai tirar as roupas mais pesadas, traja um calção e vai de encontro às águas. Ela não consegue atravessar a piscina sozinha, pela profundidade. Precisa das boias, que tem forma de termômetros, com patrocínio da Nova Schin, conseguidas em algum show de qualidade duvidável. Para ela, se conhece Nova Schin, talvez seja uma espécie de guaraná amargo e proibido. Creio que nem isso. Val é indiferente ao nome de difícil leitura para quem tem apenas 5 anos.
 
Ela se agarra nas boias e movimenta as pernas para ganhar a impulsão para cruzar a piscina. Revezamos em quem fica de olho caso algo dê errado. Somente uma vez ela se assusta e quase mergulha sem ter esse objetivo. Lembro quando tinha idade semelhante e, se ia me afogar, não lembrava da básica função de fechar a boca. Era aí mesmo que eu me desesperava e colocava-me a gritar por ajuda, enquanto a água podia cumprir sua função de deslizar para meu interior.
 
Todavia, ela não tem autonomia para nadar sem os apetrechos infláveis. Agarra-me ao pescoço e, tirando os pés dos degraus, conduzo-a até ao outro lado. Repito um pouco o trajeto e logo ela tem a intenção de retornar o caminho com a ajuda das boias, para meu descanso.
 
A sombra termina de cobrir a piscina e saímos pouco antes do vento movimentar a vegetação com mais força. Durante a estadia naquela tarde, a menina, que chamam carinhosamente de Lelê, mas prefiro chamar de Val, necessita muito da atenção de terceiros. Às vezes com minha tia (a vó), às vezes com minha prima (a dinda) e raramente com minha tia-avó (a bisa). Meu pai, muito brincalhão, não perde a chance de ter novamente uma criança em sua casa e também participa do convívio.
 
Logo após o lanche, o pessoal se reúne para jogar canastra. Tenho o pós-jogo de Confiança do Sergipe e América de Rio Preto para fazer. Ela, novamente sem a quem recorrer, para ao limite do que é corredor e do que é meu quarto. Mais uma vez ressaltando que pouco sei lidar com o papel de irmão mais velho, levo-a para assistir tevê na sala e procuro os canais de desenho, que não tenho recordados na memória. Resolvo assistir com ela a um episódio de As Meninas Superpoderosas. É uma animação mais feminista do que eu podia perceber na infância.
 
Ainda carregada de tédio, ela gira com a poltrona e pede para gira-la. No canal infantil, líder de audiência, começa o desenho da porquinha que ela tanto gosta. É minha deixa para voltar ao trabalho. Mas ela volta ao meu quarto minutos depois. Pede meus coelhos de pelúcia da Copa de 2006. Já concedi-os uma vez, no ano anterior. Repito o gesto de alcança-los desde a estante. Antes de acabar o episódio do desenho favorito, ela já enjoou dos brinquedos. Devolve-me, colocando-os sobre a cama de forma desorganizada, mas que não me importou no instante.
 
Ela arruma alguém a conversar nos fundos, onde rolava a canastra. Volto para minha paz e para minhas conversas silenciosas comigo mesmo, as quais estou cada vez mais acostumado. Ainda desconfortável, querendo ajudar sem saber muito bem como. Encerro mais um texto esportivo. Fim de expediente. Para ela também. Possivelmente cansada das voltas feitas na piscina, ela vai para casa.
 
Em meio aos chamados para Lelê, me despeço com "tchau, Val". Val tem os pais divorciados e não mora na mesma cidade que eu. Vai e volta muitas vezes, como vai e volta na piscina. Durante a tarde, às vezes a incentivávamos a cruzar a piscina, mas ela não queria. Às vezes, ela partia por vontade própria. Na vida ela não tem essas escolhas. Aos 5 anos, está refém da desorganização de morar com pais jovens e que já não vivem juntos. É fruto de um casamento que não progrediu nos votos feitos.

Val tem ainda um irmão mais velho, de 11 anos. Também foi meu irmão mais novo por alguns raros dias de minha infância e recordo bem. As crianças de hoje em dia sofrem os efeitos de um mundo em que não podem sair à rua, por causa da violência. Não podem ficar em casa e desfrutar da atenção e entretenimento dos maiores.

Tio Geda e Val são casos comuns nas correrias e selvagerias do mundo atual. Casos de esquecimento e casos em que o PRINCIPAL fica fora do resumo. São casos bastante complicados. Bastante esparramados. Como os coelhos que ela deixou sobre minha cama.
 

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