30/05/2025

O avô de seu bisavô

O avô de seu bisavô era escravo.

Ou era senhor proprietário de escravos. Um escravocrata.

Ou era agressor. Bêbado.

Marinheiro ou portuário. Ou estava aprendendo as novas ferramentas. Sonhando com um novo mundo. Morrendo em um velho mundo.

O avô de seu bisavô era um europeu antissemita.

Era um racista ou talvez nunca tivesse visto um negro.

Ou veio ao Brasil de navio. Escravo. Ou era neto de quem veio ao Brasil. De navio. Escravo.

Ou se revoltou com as monarquias. Ou serviu as monarquias. Ou comprou escravos. Ou trabalhou com escravos. Ou teria direito a terras. Ou teria direito a nada.

O avô de seu bisavô talvez se achasse mais importante do que outros. Que teria mais direitos. Sobre as propriedades de terra. Sobre pessoas. Sobre a esposa arranjada. Sobre a esposa comprada. Sobre a venda da alma da filha. Para outra família. Que ele escolhesse.

O bisavô de seu bisavô talvez fosse angolano. Mas nem existia o país. Talvez fosse moçambicano. Mas nem existia o país. Talvez fosse camaronês. Mas nem existia o país. Talvez fosse ganês. Mas nem existia o país. Era de alguma aldeia ou de alguma etnia. Era de guerrear na própria África. Ou era da paz. Não mais.

O bisavô de seu bisavô era indígena. Ou trabalhou escravo ao lado de indígenas. Ou caçou indígenas. Ou lavou as mãos nos afluentes brasileiros.

O avô de seu bisavô te daria orgulho e resistência. Ou vergonha. Ou ele não te entenderia. Nem mais entenderia o mundo tão mais profundo. Será? Mas a maioria nem pensa nisso. Segue o fluxo e as leis vigentes. Mais uma geração de gente. Quantas mais? Quem será o último neto?

27/05/2025

Em uma rede social a sua foto de perfil estava tão bela que eu ampliei as partes do seu rosto até não haver distinção e contornos. Eram somente pixels. Nenhuma definição. Talvez sejamos assim, né? Apanhado de células, bactérias, ou só átomos misturados.

Será que é assim que se perde a razão? Se amplia tanto a pessoa que nada mais se enxerga? Contigo senti assim.

22/05/2025

Grande Liberdade + Noite de Sexta, Manhã de Sábado

Costumo considerar que sou agraciado ou desgraçado por mais coincidências do que a maioria das pessoas. Mas também sou mais observador, é bem verdade. Ao assistir filmes em sequência, coincidentemente estabeleço conexões entre eles.

Em Grande Liberdade, filme austríaco/alemão logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o cidadão Hans Hoffmann seguidamente é prisioneiro pelo crime do parágrafo 175: atos homossexuais. O filme traz uma perspectiva nova em relação ao que observo das histórias prisionais: a perspectiva do homossexual. Negligenciado e até temido por outros carcerários. Esculachado, corajoso. Há quem negue dividir celas como se ali se tratasse de um cometedor hediondo. Há quem se aproxime por experimentação ou jogos de sedução. Como funciona a mente do sujeito enquanto está de cárcere?

As costumeiras manobras para escapar da prisão em muitas películas, em Grande Liberdade tornam-se maneiras de driblar a fiscalização para namorar um pouco. Curtir uma noite. Dividir uma cela, enviar presentes. Seria o amor um crime? Hans Hoffmann desafia corações, tempo de cárcere, novos crimes dentro de um espaço já reservado aos criminosos. Encontrará ele o amor ou apenas aventuras obsessivas? E o quanto isso muda para nós prisioneiros do lado de fora? Homo ou heterossexuais?

O virtuoso Hans chega a preferir a prisão a estar preso fora das grades sem um grande amor. Dramático. Em Noite de Sexta, Manhã de Sábado, o diretor recifense Kleber Mendonça Filho, aclamado por Bacurau, Aquarius, Retratos Fantasmas e outros filmes voltados aos espaços e temas de suas origens, traz essa trama do curta centrada no casal Pedro e Dasha. Pedro está nas ruas do Recife em uma noite de sexta-feira, como condiz o nome. Dasha, no exterior, acorda pela madrugada, amanhecer de sábado. Pedro lamenta poder tê-la acordado com a ligação telefônica, após ser consumido pela solidão de uma festa. 

Pedro circula a noite recifense, encontra um posto 24 horas para nova ligação. Os telefones celulares dos atores são arcaicos para pensar na nova era dos smartphones. Ligações de voz eram a tônica. Eles se encontram mesmo a milhares de quilômetros. Ouvir a voz um do outro, mergulhar pés nas areias de mar ou de rio, onde amanhece Pedro podendo ser assaltado no lusco-fusco do Recife, uma das capitais mais violentas do Brasil. Onde Dasha tenta relembrar com ele as ruas da capital cosmopolita onde está, e onde passaram algum tempo juntos, ao que tudo indica o labirinto de lembranças: as saudades.

Os atores apresentam sintonia. Sintonia que uma simples ligação de voz pode ou não oferecer. No inglês enferrujado e tímido de Pedro com a acostumada estrangeira Dasha, seja de onde Dasha for, com esse nome meio russo, com os 20 graus que ela afirma serem o verão de onde está. E o que importa realmente onde esteja? Importa a Pedro saber o telefone dela, com ela conversar. Os atrativos da era pré-smartphoneana. O prazer de encontrar uma sonhada mesma água, mesma areia, mesma vibe. Uma verdadeira mesma lua, mesmo sol, mesmas estrelas. Quantas vezes pensamos ver o mesmo que as pessoas que estão distantes? em outros fusos, inclusos.

Em Grande Liberdade, reunem os presos numa única cena mais para final, em que assistem ao televisor que exibe os primeiros passos do homem à lua. Cena que Hans esperava mais marcante, mais poética. Seu companheiro de cela queria alienígenas e tudo o mais. Quem saberia como era o universo naquela época das primeiras imagens transmitidas via satélite? Até hoje há quem duvide da Terra redonda e azul predominante dos mares.

Para Hans Hoffmann não interessava a distância para fora das grades ou até a Lua, se o amor se apresentava para ele em meio às ferrugens, nos pequenos intervalos para banho de sol pela vitamina D, em noites improvisadas após provocar os guardas com erros de contagem. Amor que custava o enfrentamento da cela solitária em represália de seu crime favorito. Ao Pedro, na liberdade da noite de Recife, mais valia pagar o alto preço da ligação internacional para Dasha do outro lado do mundo. E quem de nós solitários do mundo tem coragem e certeza e audácia para condenar? Condenar o amor entre as grades ou do outro lado do planeta azul. Ou onde for.

18/05/2025

Buena Vista Social Club

Pelas ruas de Havana

Eu me vou desde pequeno

Ou me disse uma cigana

Ou foi um outro moreno 

Se não fosse Havana

Preferia fosse a morte

A Santiago de Cuba 

O meu abraço mais forte


A Santiago de Cuba

Santiago de Rio Grande

A Santiago de Chile 

Ou por onde mais deixei amante 


Jamais deixei de amar-te 

A arte dessa salsa

Jamais em alguma balsa

Jamais deixei de amar-te

Tú eres mi à la carte 


Ao controle dos cartéis 

E dos papéis das autoridades

Quero nos meus registros

O meu crime de amar-te

Quero anunciado em alto-falantes 

Quero que conste nos autos 

Os meus prantos de saudade 

O meu crime de amar-te


Jamais deixei de amar-te 

Pela arte dessa salsa

Jamais em alguma balsa

Jamais deixei de amar-te

Tú siempre mi à la carte 


Te dedico o sol que me nasce

Te dedico as minhas preces

Mesmo que nada aconteça

Te dedico más de mil veces 

Tus besos son lo que me vale 

Por lo vale de la utopía 


Te dedico o dia que me nasce 

O amanhã e o mesmo de julho 

Te dedico calendários 

Aqueles que ainda nem penduro 


A Santiago de Cuba 

E toda sua luta

Buena Vista Social Club 

Som que me faz permuta

15/05/2025

Há algumas espécies de filmes ou documentários baseados em homenagens preocupadas em serem feitas em vida, como se diz. E conforme se tornam filmes ou documentários mais antigos, assiste-se sabendo que os então homenageados em vida já morreram. E isto é bastante triste.

Nessa passagem chamada vida, encontrei em algumas pessoas negras a bondade e a humildade que não consegui discernir nos melhores brancos.

Visto o Buena Vista Social Club, sobre a música cubana, documentário do imprescindível Wim Wenders.

Tenho

Tenho

Problemas médicos de todas as ordens

E até os médicos desistiriam 

Como uma criança além dos trilhos 

Abandonada à própria sorte


Tenho

A companhia como uma úlcera 

Algo que pulsa como um ser vivo

Tão nocivo 


Tenho 

A madrugada como o meu tempo

Um alento 

Como se os outros tempos não existissem 

Partissem 


Tenho 

A saúde perdida como um escambo 

Time acoado jogando na Argentina 

Sem mando

Sem brilhantina 

Caminha 


Tenho 

Os capítulos enlatados de final 

Tão fácil 

Prever o mal que já não tem raiz 

Tem galhos folhados 

Me diz o que eu fiz 

Se há outro lado

Que eu nado 

Um refugiado do próprio corpo 

Alado 

Desabado 

Fado


Tenho 

E às vezes nem me lembro 

O que mereço 

O que agradeço

Gessos 


Tenho

Metamorfose em último brilho 

Martírio 

Cílios sublinhados de lágrimas 

Feitas em fábrica 

Aguardando a última cartada

De nada 

06/05/2025

Samba bossa qualquer fossa

Vão seus olhos

Vão-se as vozes

Doses

Alucinógenos

Me dá mais desse negócio

Há nada melhor

Ao redor

Do mundo

Profundos

Escudos de realidade

Nada desde la navidad

Nenhuma novidade

Nada

Tudo adia 

Tudo ardia 

Nada, minha poesia

Brasas

Tudo tudo engasga 

Nem Lady Gaga no Rio 

Nenhum outro arrepio 

Nem um outro arrependimento

Nada mais se concretiza

No cimento dessa brisa

Nenhum outro tormento

Nenhuma outra coriza 

Nada más pide prisa 

Nenhum outro Uruguai 


Paranoico vivo eu

Nem mais estoico 

Nem mais heroico 

Do que posso ser

O que posso querer?

Se não você 

Se não você

Então você

Está...

Em qualquer outro lugar 

Deixa pra lá 

Deixa pra lá 

Deixa aqui

A saudade vai continuar


Samba - bossa - qualquer fossa

Trincheira dessa guerra cheia 

Chega fácil, chega míssil 

Sem avisar

Explode, ninguém acode

Morde no ponto fraco 

Morde forte sem suporte

Vou continuar 


Samba - bossa - qualquer fossa

Qualquer banco de praça

No Uruguai cesta chamam canastra

Nenhuma carta vai me fechar

Ferida erguida de solidão 

Dai-me os pontos 

Dai-me tua mão 

Vamos continuar



"Eu saúdo o milagre econômico, mas o que quero mostrar são as festas do bairro"

Em Chris Marker 🇨🇵 Sem Sol (1983), documentário a partir de anúncios que estavam em cartas escritas ao redor do mundo.

Um causo chamativo é de um casal de japoneses que foi até um ritual, um templo de adoração aos gatos. Nesse espaço, como se fosse um mural ou muro de homenagens aos bichanos, há esculturas de gatos brancos em algum material entre a cerâmica e a porcelana. São depositadas velas e orações. Após a curiosa manifestação, a explicação da ida do casal de idade avançada é emocionante. Sua gata não havia morrido, mas fugido de casa, sem paradeiro definido. Foram pedir benção e que ela seja protegida, para esta vida ou depois. Não sabem se está viva, mas quando morrer não saberão e não haverá quem ore por ela. É uma das súplicas mais pura possível em todo planeta. Chris Marker sempre sensível ao extremo, seja a cada animal selvagem que morra na seca da África, transformando savanas em desertos, ou para mostrar sorrisos islandeses naquela ilha tão distante, na cena de abertura do documentário.

05/05/2025

Frases do Dia

A memória não deve ser obrigação moral. Deixe que venha naturalmente. 


Os feitos revolucionários são suprimidos para esconder a real força de um povo.


Após leitura de Espelho das Cidades, de Henri Pierre Jeudy e assistir a Pesadelo Perfumado, filme sobre as Filipinas, respectivamente.

02/05/2025

De Jueves a Domingo (2012)

Primeiro filme da chilena 🇨🇱 Dominga Sotomayor, uma diretora já conhecida por sua alta sensibilidade em dramas lentos. São mais lentos do que a maioria das pessoas tolera, o que confere status Cult. A pré-adolescente Lucía viaja com seus pais para um fim de semana estendido, perfeitamente como se fosse este em que escrevo, entre o 1⁰ de maio dos trabalhadores e o fim de semana.

Ela tem um irmão mais novo e consideravelmente pentelho, Manuel. Seus pais iniciam a viagem no que parece mais um fim de semana familiar qualquer. O filme mescla tons de comédia com o drama infantil, mas sobretudo perpassa uma nostalgia de nossas infâncias. A identificação criada com a película é muito por conta das viagens de carro que eu mesmo presenciei ao longo da vida. Meu pai mais descontraído ao volante, minha mãe mais preocupada ao lado dele, como Ana se preocupava superprotetora ao filho Manuel. Minha irmã sendo mais velha, eu o mais novo. Dominga prepara uma direção sensível no filme, onde as respostas sempre se apresentam nos detalhes e sutilezas para o atento espectador. Ou para própria Lucía, observadora das conversas adultas.

Lucía desvenda os mistérios daquela viagem. Percebe o clima de apreensão entre o casal. Uma carona às jovens de recém completados 18 anos, causando incômodo na imagem da mãe, que logo reforça seus cremes faciais. Uma acusação sobre a empregada roubar joias, uma conversa sobre alugar um apartamento. Uma lembrança de infância do pai sobre aquela região do Chile quando tinha 7 anos, mesma idade do pequeno Manuel.

Brincadeiras de um amadurecimento, de Lucía herdar um terreno há muito não visto, sobre sua curiosidade para aprender a dirigir. Uma menina curiosa que nota as mudanças de comportamento de seus pais. O pai que atola o carro num trecho de riacho. Recebe ajuda de outrem. A mãe que conversa ao pé de ouvido com um amigo com o qual se encontra na estrada. As crianças, Manuel e o filho do amigo, brincam à parte desses acontecimentos mais sérios. Mais velha, Lucía não passa despercebida pela guinada na história.

A tensão final em uma conversa que dá a entender que o amigo apenas consolaria a mãe chamada Ana. O findar do casal então não parecia assim definitivo. Ela se desespera ao saber que o marido já havia alugado um apartamento (com a intenção deixa-los? Ao menos assim interpretei). Desesperada pela informação bombástica, Ana começa a caminhar sem rumo, fugidia no deserto chileno. Para quem o drama considerar muita água e demasiado açúcar, lágrimas de nostalgia, se não brotadas, ao menos informadas pela fábrica de que poderiam, na meteorologia dos olhos, cair. Para quem achar muita água com açúcar, a distração com as paisagens chilenas de retirar o fôlego são uma pedida. Manuel insistia, inconsolado, pela praia, mas as montanhas, a estrada, o mato e o deserto estão de bom tamanho. Um drama de amadurecimento infantil em que nos vemos em Lucía, seja por lembrança de idade, perspicácia, aventura, reflexões. Uma afeição construída pela centrada diretora sensível, seja autobiográfico ou não, o que pouco nos interessa à essa altura, espelhada e espalhada a imagem com o toque da empatia. 

Nota final: 4,5 / 5

 
Atenta aos fatos, Lucía percebe a separação de seus pais, em imagem no deserto em que a sensibilidade do jogo de câmera constrói a semi-ótica da cena: um para cada lado (Reprodução / De Jueves a Domingo, 2012)




01/05/2025

A Pista + A Erva do Rato

"Ele não sabia se inventava ou se sonhava"

Em "A Pista" - curta-metragem de Chris Marker (1962)

E não é a mesma coisa?

A obsessão aproxima tanto a singularidade que a suprime, a esfacela, objetifica a pessoa amada.

Passa a se conhecer mais a obsessão do eu-lírico/ narrador do que as reais condições, pensamentos e opiniões do ser idealizado. Quem está do outro lado? Como reage e se manifesta a tudo isso?

"A memória de um tempo duas vezes vivido"

Em A Pista, um homem é submetido a experiências de laboratório após a deflagração da terceira guerra mundial. A expectativa em polvorosa na Europa deveria ser grande para projetar essa realidade ficcional em pleno 1962, alguns 17 anos após o término da chamada segunda. O homem viajou no tempo nas experiências dos cientistas. Voltou ao passado para uma forte imagem de mulher na infância, algo que lhe conferia paz em meio a tempos bélicos.

Também foi projetado ao futuro, quando uma nova espécie de civilização rejeitava o que hoje consideraríamos civilizados, pois eles enxergaram esse tempo passado como sendo formado por bárbaros. Com somente um componente, uma caixinha de energia, o narrador confere que o viajante no tempo-espaço poderia alimentar toda a indústria humana daquele período do século XX.

A memória de um tempo vivido duas vezes surge como última lamentação daquele homem condenado a experiências, lembrança de Marker de um período recente em que os nazistas usavam seus prisioneiros como fontes de experimentos macabros. Apesar de ter a oportunidade de vivenciar acontecimentos como testemunha em dois tempos, o homem selecionado pelos cientistas, e portanto protagonista do curta, não passava de um mero instrumento para os experimentos de viagem no tempo.

E a nossa mente? O que nos assegura, sem podermos nos transportar em matéria a outros tempos, quem nos assegura que o passado assim foi como lembramos ou que o futuro assim será? Nos resta apenas a construção tijolo a tijolo do tempo presente, por mais cansativo, paliativo e mórbido que possa parecer, é o que nos existe. Será?

############################################

Quanto à obsessão do homem em A Pista, me recorda ao filme que assisti recentemente  chamado "A Erva do Rato", um nacional com toques machadianos. A obsessão do personagem interpretado por Selton Mello pela mulher interpretada por Alessandra Negrini também anula as singularidades dela. As singularidades físicas dela são fotografadas dos mais variados e aproximados ângulos, mas me refiro às singularidades no sentido de como ela se sentiria, aprisionada e sem familiares, naquele ambiente estranho, usada para as concepções de fotografia que ele, antes e depois ainda solitário, projetava em laboratório de revelação de fotos.

Ela que no diálogo inicial, um dos poucos do filme, revelara ser professora. Mas quê tipo de professora? O que poderia ensinar e para quem? Anulada e escanteada, trancafiada em uma casa pelo obsessivo parceiro que lhe prometia os mais recatados cuidados até o fim de sua vida. Que assim se encaminharia em sequência do filme.

Em A Pista, posso pensar numa duplicidade de significado para esse nome entre a pista, como a de aterrissagem de um avião, que a banda uruguaia La Vela Puerca promete infinita, a pista entre o primeiro toque das rodas que já é passado, o caminho contínuo que é presente e o ponto de frenagem que nos é futuro. Ou podemos pensar no caminho do voo (aéreo) que aborda maior trajeto para essa metáfora. A Pista também que nos fica é sobre os segredos da mente humana, que apenas revela pistas, sem sua totalidade - inalcançável, impossível. São negativos de fotografias não revelados. A Pista também é deixar apenas pistas sobre quem era a mulher da obsessão do escolhido cobaia dos laboratórios subterrâneos de um mundo devastado pela radiação. E o risco da radiação desde 1962 que permanece como risco em 2025.

Sem ser o assunto principal em A Pista, minha interpretação baseada em vivências recentes confere as dúvidas do quanto uma situação é realidade e o quanto são projeções somente, projeções que anulam as manifestações legítimas de outrem; pessoas com direitos democráticos de pensar e des-oprimirem-se. Desopilarem. Fugirem das pilhérias aprisionantes que um pode formatar como armadilha.

Em A Pista, existe a mulher projetada nas visões, a quem quase nenhuma informação temos, mas também o homem aprisionado como cobaia pelos cientistas, do qual, embora rato de laboratório, sabemos o que ele pensa e projeta, afinal, é parte da transposição da experiência. Relatórios anotados.