31 de julho de 2024

A cadeia

Temo mais a cadeia do que a morte. Tenho isso comigo há muitos anos, talvez desde a infância. Repito, mas não sei se da boca para fora, porque não passei pela cadeia nem pela morte. Por enquanto, mantenho minha opinião.

Assisti a dois filmes em sequência sobre a temática. Não sabia que eram relacionados. Ou possivelmente relacionados. Assisti a Os Miseráveis (1935), de inspiração do livro francês de Victor Hugo. O autor designa que enquanto houver pessoas condenadas a pagar mesmo após suas condenações, condenadas a serem eternas presidiárias, a história se manterá atual e justificada. Por isso é um clássico.

Jean Valjean de Os Miseráveis roubou um pão para alimentar sua miserável família e foi condenado à pior prisão possível. Sem fiança. Sem novas chances. Após fugir e ter nova chance concedida por um sacerdote, ele prospera e adota a filha de uma empregada que era explorada em seu trabalho. Mas o passado do lorde acaba vindo à tona e ele se torna procurado pela dita justiça. A perseguição nunca termina. As lutas grevistas por direitos atravessam o filme em uma nova geração, capitaneada pela filha adotiva de Jean e o affair por um protestante. A temática gira em torno do julgamento severo e rotulatório sobre um apenado por um crime de básica necessidade: o direito à alimentação.

Em Whispering Pages ou Páginas Ocultas do diretor russo Alexander Sokurov, o jovem andarilho errante admite ter assassinado a velha de uma das ruas pela qual circula. O filme de 1994 dialoga com o clássico russo Crime e Castigo de Fiodor Dostoievski - perdoem a grafia que nunca sei como o cito nessas páginas.

O filme mais recente trafega a contagotas por paisagens urbanas inóspitas, com o cinza, a miséria e a pobreza em abundância. Confidente, o jovem tem num dita irmã a anunciação de ser o autor da morte da idosa. A conversa entre eles circula por temas como religião, culpa, o crime e o castigo do título da obra em prosa. A irmã, religiosa, pede que ele se ajoelhe e se confesse perante a sociedade. Ele debate com a mulher: "você reza a Deus, mas o que ele faz em troca por você?".

O sentido vaga pela desorientação e desesperança do jovem desclassificado, pobre, de andar errante, porém inerte. Não há a mostra do crime em si, apenas a confissão e as incertezas de como sobreviver, independente do assumir de um óbito ou não.

Os cometimentos criminais são distintos nas histórias, nos livros e filmes. Livros que ambientam filmes. A justificativa de Jean Valjean é mais fácil de assimilar, de defender, de revoltar por seu destino implacável em perseguição trágica que lhe impõe a dita justiça francesa. O crime que Raskolnikov comete no original dostoievskiano também pode contar com a justificativa imputada, atribuída, mas a aceitação é conversão mais duvidosa perante os conhecedores da trama.

Independente do cometimento, como nossa sociedade lida com essas forças, com esses tabus? Que respostas damos e são aplicadas? Como julgamos a todo curso os delitos passados? Que tipos de sombras nos percorrem e muitas vezes nos nocauteiam com o passar dos anos? Quais pães roubamos e velhas assassinamos e de que formas pagamos no cotidiano? Como se comporta a Justiça que a uns ladrões de galinha (ou pão) deveras condena enquanto magistrados, desviadores, latifundiários, corruptos, ocultos por laranjas, sonegadores permanecem imunes? Quantos Jean Valjeans ficam em cárcere por pequenos julgados delitos, quantas senhoras burguesas permanecem recebendo aposentadorias diante da fome marginal? Quantas justificativas podemos atribuir a cada um deles? E a nós mesmos.

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