Meu pai começou a mexer com as madeiras em uma minúscula área de poucos metros quadrados, menor e mais baixa do que qualquer quarto aceitável, tanto é que não caberia uma cama ali. Mas maior do que uma casa de cachorro. A não ser que sejam vários os cachorros inquilinos. Todavia, era menor do que uma baia para um cavalo também, para entenderem o tamanho do empreendimento. Acontece que ele arrumava ou supunha arrumar o que fazer por ali. E tirava pedaços distorcidos de madeira, diferentes tamanhos, os cortava, serrava, lixava, pregava e sempre havia algo para emparelhar e ajeitar na construçãozinha. Assim ele passava uma tarde de arrancada de julho de 2020. Sua maneira hiperativa me despertou a escrever algo. Ouço-o trabalhando ao fundo. Juro que queria uma destreza maior com ferramentas, mas ainda almejo mais os dotes culinários.
O cenário de leve perturbação da paz é acompanhado pelo limpador de piscinas da casa vizinha. Os bem abastados moradores ao lado contam com esse serviço de uma maneira que ainda não calculei. Talvez quinzenalmente. Acontece que o trabalhador aparece e tomo conhecimento de todos os assuntos que ele adentra-se a discursar. Fala da formação em escola técnica, trunfos do PT ignorados por quem ignora o PT, fala de exército, fala de carros, fala sobre peças eletrônicas e motorizadas, fala sobre oportunidades de emprego em Santa Catarina. Deve estar fomentado a falar sobre mulheres com o vizinho, mas a esposa do proprietário está na casa e eles poupam essa oratória memorativa e imaginativa que tanto preenche vazios em bares. Lembranças e tristezas que fariam algum se jogar na piscina a método de afogamento, certamente.
Ademais, estou lendo e com alguma inquietação a respeito de Patti Smith, até o momento a maior descoberta do cenário punk das Nova York e Los Angeles estadunidenses. Patti é complexa, idolatra pessoas de diferentes segmentos e, ao que parece, tentou de tudo um pouco em sua vida. Seria professora, mãe, empregada fabril, passou para as artes encantada pela poesia do francês Rimbaud, encontrou as pinturas, a escrita em verso e em prosa e finalmente o complemento de ser uma das mais famosas rockstar da história. Produções independentes, versatilidade, encantamentos. Ela tinha quês a mais do que aquelas esdrúxulas figuras todas, regadas a drogas e sexo, pessoas desprovidas de ideais e consequências. Longe de querer intrometer-me em moralidades, reconhecendo inclusive a importância exageradora em contradição às morais lineares dos bons cortejados costumes. Mas carrego uma decepção a partir do entendimento de que a maioria das ações e integrações do movimento punk era desprovida de qualquer ato conscientemente político. Conscientemente coletivo. Conscientemente social. Eram uns babacas que abasteciam seus próprios umbigos e mandavam as mais diversas drogas para dentro. Mas nesse cenário de preenchimento freak, Patti Smith me interessou.
Preparo algum refrão sobre a rasidade daqueles norte-americanos:
Eu queria ser admirado por Patti Smith
Acho que não há nada mais chique
Fodam-se os outros beatniks
Eu queria ser admirado por Patti Smith
Caberia em um rock gaúcho. Em uma tarde de inverno, a temperatura preguiçosa a não ultrapassar a barreira dos 12 graus, passam-se muitas coisas. O sol colide em meu corpo e ilumina metade de minha face enquanto escrevo essas linhas. Deixo uma fresta da janela do quarto aberta, porque, apesar do frio, estou arejando contra a formação dos fungos: o mofo nas paredes. Observo a lista de filmes de Alfred Hitchcok ao meu lado. Cumpri menos da metade, mas pretendo avançar nos próximos dias. Me incomoda seu machismo, me encanta sua percepção de composição das cenas e cumprimento elaborado dos roteiros.
Meu celular está com completa distorção do funcionamento da bateria. Se apaga fácil. Viciada. Como um junkie que injeta heroína. O futebol não sabe se volta em meio à pandemia. Ganancioso. Minha gata dorme em sua caixinha de papelão forrada na lavanderia. Desconhece a presença enaltecedora do sol neste horário, que lhe faria bem ao pelo e para meus olhos ao vê-la, ressaltando os tons de laranja. Preguiçosa. Em seguida, escrevo mais uma página esportiva para o segundo jornal da cidade e da região. Repetição.
Será que o barulho da furadeira me lembra o dentista ou o dentista me lembra o barulho da furadeira? Entre nuvens de gafanhotos e ciclone pela região Sul do Brasil, transitamos de junho para julho. Os gafanhotos vieram do Paraguai, contornaram a Argentina, mas nem eles quiseram entrar em nosso país. Corretos que estão. Ultrapassamos as 60 mil mortes por covid-19 nesse ano de abstenção da felicidade para o povo brasileiro. Quem ignora é tão maldito quanto o vírus. Descubro que Patti Smith ainda está viva, aos 73 anos.

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