14/06/2020

Offline

Tinha pousado a xícara de café ao lado do monitor. Era sua mesa de trabalho em casa. Ele que, no momento, estudava e trabalhava e, mesmo sem sair de casa naquela pandemia, estava abarrotado de tarefas por cumprir. Foi quando o amigo, na recém ligada videoconferência dos confrades, perguntou:

- Por que você não escuta aquela banda peruana que lhe falei, a banda El Polen?

Ele se controlou para não arremessar a xícara contra a parede, justo uma de suas favoritas, com o desenho de um boxer saltitante em um gramado, ideia de um parque em liberdade.

- Por que eu não escuto a banda que você recomendou? Porque não tenho tempo! Tenho tempo para nada! Você vai ler o material que eu preciso desbravar para realizar o EaD? Uma média de 30 páginas por dia, vejam só! Ainda faltam três livros para concluirmos esse semestre. Você vai? Vai prestar minhas provas e avaliações quando chegarem as datas? 60 questões de múltipla-escolha e cinco dissertativas, média de 20 linhas de resposta para cada dissertativa, com textos e apêndices de consulta que não estão no Google. Duvida? Pode pesquisar os títulos, eu te passo o nome das obras depois. E aliás tem consultas em espanhol e em inglês e o meu inglês anda enferrujado desde a escola, com exceção de quando eu tinha tempo para ouvir músicas inglesas e norte-americanas e, quando muito, australianas. Mesmo o espanhol precisava ser galvanizado, no mínimo reidratado. Já faz dois anos desde a minha viagem a Buenos Aires, quando eu tinha tempo. E as memórias estão muito mais na câmera fotográfica do que na ponta da minha língua, comprendes muchacho? Además que preciso levar meus dois boxers para passear de três em três dias, ou ficam insuportáveis, assim eles se acostumam e eu também, a pelo menos esticar as pernas.

O que mais? Vai preparar o meu almoço? Vai esquentá-lo para eu jantar? Talvez tu faças isso... Ou quem sabe vá ao supermercado por mim. Compre as latas que estão esvaziando na despensa, compre pães fatiados, bisnagas, o que sobreviver a mais tempo no armário e no canto da mesa. Compra o meu café que lá se vão três boas xicaradas por dia. Por isso fico assim, ainda disposto para o anoitecer, quando idiotas como você, seu babaca, me fazem esses questionamentos como se eu tivesse nada por fazer. E quando termina o dia, em seguida, sabe o que eu faço? Não sabe, não é? Eu vou até a pia e, adivinhem senhores, lavo a minha própria louça. E depois disso, não obstante eu seco. E, de preferência, pela boa colocação e para evitar barata, que mês passado, mesmo com esse frio, adivinhem, apareceu barata. A diaba custou três chineladas para morrer. Morreu. E morreu o meu hábito de deixar a louça exposta pelas noites, a louça indefesa, a louça, os pratos, as xícaras, os talheres que nem gritar podem. Coitados.

Coitado de mim com tantas tarefas. Correio, banco, saídas que não posso evitar, jogo com o horário do EaD para isso. Estou prestando dois cursos à distância. Entrego os relatórios do meu serviço antes das 16h45 de cada dia. É a forma como eu bato o ponto. Casos e mais casos. Às vezes mais exceções do que casos, podem vocês imaginar. Burocracias, consultorias, troca de e-mails. Abro o meu e-mail, eu calculei, uma média de 42 vezes por dia. Claro, tem vezes que é somente na base da tecla F5, a aba fica ali aberta. Ela e mais umas 12 abas abertas por vez e tento não me perder. E clico uma média de 168 vezes na aba errada por dia. E meu salário, nisso tudo, nada de reajuste que compense o que está acontecendo. Sim, sei, eu precisaria ser grato por ter meu emprego e conseguir manter meu apartamento. Acontece que eu também tenho feito compras e encomendado serviços para cuidarem dos meus pais, a coisa tem apertado, percebem? Mas para vocês é tudo muito fácil mesmo. Mesmo você, Thomas, com filho pequeno, você não faz dois EaD por dia. Nem você, Everton, que tem tempo para ouvir bandas peruanas. Vocês todos, seus inúteis, desconhecem a minha realidade, desconhecem o meu dia a dia, desconhecem o esforço que eu faço, passo, lavo, seco, varro para evitar que apareça outra puta barata em alguma noite silenciosa como essa. Me irritaram tanto que terei, por obséquio, reservar-me o luxo da quarta xícara de café do dia e, assim sendo, tenho certeza que posso expirar minha média e o café acabar antes da próxima ida ao supermercado, programada para o dia 18. Agora eu só quero saber, apenas por curiosidade, porque vou ouvir porra nenhuma, por que você acha que devo ouvir uma banda peruana chamada Polen?

Dois dos seis iniciais já estavam offline desde o papo sobre correios e serviços de banco. Quem se manifestou foi Thomas, o pai de filho pequeno:

- Achamos que anda muito estressado. Tá esquisito conosco.

E Everton, o da banda peruana, completou:

- Teve tempo para esse teatro todo e não pode ouvir uma progressiva dos peruanos?

Ele arremessou a xícara dos boxers contra a parede e ficou offline.

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