o domingo que não levantou
eu levantei
nem era tão cedo, bem depois das seis
a grama por cortar
o café por fazer
o puro prazer a se esquivar
guardado em nenhuma gaveta, nenhuma dispensa
dispensado desse jogo amistoso que nada valia
iria para a próxima rodada a fortificar
como um café que pode ser mais forte ou mais fraco
quando o gosto do asco permanece ao final da xícara
é preocupante
teus passos soam pesados sempre consoantes
a memória é um lago que esconde monstros
se tudo mostrasse não sobraria turista
ao alcance opaco e diligente da minha vista
se paramos assim a pensar o café esfria
assoma-se o asco com o fiasco do desperdício
indício de que coisa melhor não há por vir
o momento é o souvenir que nos acompanha
como uma chave no pescoço
ou de bolso em bolso até o pijama
e quando me dispo é lanterna ao porão até as entranhas
peças estranhas se movem, outras permanecem
rasteiras, tacanhas
mas falava eu de um domingo que não levantou
eu levantei
como de lei a fazer o café e tudo bem
a grama ainda por cortar
e eu a contar os passos nesse terreno escasso
de mão de obra
o tempo que me sobra é o de cortar grama
barulho a fazer para o domingo que não se levanta
do silêncio da rua até se espanta
apostava adélia prado em uma das três
opções que estão sempre a suceder
latido de cachorro, grito de criança ou alguém a chamar
que o café está pronto, vem ou vai esfriar
como o café estava bebido e o trigo comido
comigo ninguém falou mas era a criança
que se levantou para suas andanças
no espaço sombrio de um pátio vazio
de um domingo que não se levanta
fica ele a chutar a bola contra a parede
na sede que algo suceda
eu a pensar nas sedas que não tenho
nas sagas erradas que não se desenham
domingos sem comércio e sem carteiros
como outros domingos, mas esse releio
no calabouço exótico da memória
que separa umas e outras histórias
vida afora nessa releitura
a tua é só tua, a minha é só minha
carinhos, carimbos, assinaturas
borras de café e digitais cruas
minhas pontas de dedos de unhas roídas
folheiam as páginas a transmitir vida
vida, salvo um ou outro chute do garoto
não se passava naquele domingo
poucos pingos de cada espírito
que deixavam marcas, no máximo pegadas
no chão combativo
passos arrastados, florescimento só de espinhos
de que serviriam os espinhos sem as rosas para proteger?
as cercas elétricas acopladas aos muros
em quintais sombreados seguros
em missão nesse domingo moribundo
apenas evitando que a bola suba
e caia no outro quintal adjunto
era o culto do todo oculto
cada um para dentro de sua miséria
a cabeça entre o trabalho e as férias
as quimeras revoltadas aos resmungos
o domingo que não levantou
foi o primeiro de uma série
como uma cárie devoradora contagiosa
séria sequência impetuosa
mistérios, impérios e adultérios
silenciosos
aos ociosos de um semi-cemitério
22/03/2020
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