03/11/2019

paranoia rodoviária

Eu esperava ali sozinho na rodoviária. Os ônibus do horário anterior haviam recém partido e os bancos se encontravam vazios à beira da plataforma de concreto, a área destinada ao vai e vem dos transportes coletivos. Sentei-me de frente para onde eu embarcaria mais de hora depois. Não eram estruturas confortáveis, o que deixava claro que os utilizadores costumam chegar ali somente minutos antes do derradeiro embarque. Mas considerava aquele um espaço seguro e não queria mais me acomodar com as pesadas bagagens, compostas por duas mochilas, em outros cantos. Ali estava de bom tamanho.

Miscelânea de pessoas por vir. De diferentes localidades, interior ou demais capitais, indo a trabalho ou voltando para casa. Visitas, festividades, enterros, diferentes motivações para se deslocar em tempos de passagens caras. Lembro quando eu pagava cerca de 50 reais para estar ali. Agora eram quase 90. Tudo isso em um combo de poucos anos. Quem dobrou salário nesse período? Envolto em pensamentos distantes, talvez mais além do que a trajetória daqueles ônibus, distraía-me com o desenroscar dos fones de ouvido para em seguida plugá-los ao celular e colocá-los como transmissores de meus temas musicais previamente e minuciosamente selecionados. Ênfase nos artistas que eu recém havia escutado em viagem com o intuito de vê-los e isso eu havia cumprido. Visitei e conheci pessoas e outras tantas que não me foram possíveis ver por contratempos delas ou impossibilidades ou mesmo por - mea culpa - não tê-las colocado em prioridade para possíveis encontros. Bola doravante.

Surge-me em periférico campo de visão a imagem de uma bela moça, dos atributos físicos que costumam me atrair. Características gerais devidamente observadas nessa olhadela de fração de segundo. Ao tomar consciência do panorama em volta, há uma maior ocupação dos lugares em relação ao período anterior de minha chegada, obviamente. Bom nível de preenchimento, a superar os 50% dos arredores do box 4, de onde partiria meu ônibus. Ainda entretido com as atrações musicais direcionadas aos meus ouvidos para transmissão direta ao sistema nervoso central, passei a considerá-la parte de minhas distrações. Imaginar idade, procedência e principalmente: estado civil.

Em outra das olhadelas - talvez a terceira ou quarta - observo que ela está conversando com alguém. Pago o preço pela demora em agir. O caríssimo custo de não tomar uma atitude antes, de apenas observar de canto de olho, sem estabelecer um contato visual que poderia resultar até em minha migração, bancos ao lado, em direção a ela para ligar assuntos. A dúvida entre começar genérico nas habituais conversas desenvolvidas desde que a linguagem é assim linguagem, só observar nos filmes antigos ou mesmo no que é empregado em livros de séculos anteriores. Olá, tudo bem, como está, vai para onde, a que veio, a que vai, interessante. Ou quem sabe investir em algo mais dinâmico mas que pode assustar as pessoas. É sempre uma dúvida ponderável.

Iniciar diretamente a conversa sobre seus gostos musicais, sobre para quem foi seu voto na eleição passada, se possui outras referências políticas ativistas, o que costuma ler, o que gosta de fazer no tempo livre, qual o sabor favorito de sorvete, se come ou não come carne, se conhece mais do mapa da cidade que sempre me interessa saber mais a respeito, de onde seriam suas raízes e gostaria muito, muito, muito mesmo de conhecer suas origens em nome e sobrenome. Calma, respira, não vai acontecer. Não há porque manter esse desgaste. Estava recém voltando dessa subida, dessa ascensão em aproveitar viagem em terras parcialmente desconhecidas. Uma hora se volta e, voltando para casa, outras aventuras desenvolvem-se, não é mesmo? Mesmo assim há o incômodo. Antes ela não estava conversando e agora está. Com quem está? Não interessa, foi perdida a oportunidade. Por ordem de chegada poderia ser sua esta chance. Nisso concorda? Concordo.

Alguém tomou o lugar na janela. Inclusive minha poltrona dessa viagem era no corredor, por comprar mais em cima da hora e fugir da classe executiva que tornaria a viagem ampliadamente cara, para acima dos 120 reais. Um assalto em transporte, praticamente um sequestro para voltar para minha cidade. Enfim, tomado de assalto fui naquela situação, evidentemente, pois alguém roubou meu lugar, o lugar no banquinho desconfortável de madeira ao lado da donzela. O preço de migrar chamando a atenção dos demais ocupantes à beira da plataforma para dirigir minhas mochilas para mal acomodar-me em outro banco duro de madeira com encostos de ferro aos braços, mas tudo isso com o intuito e conhecer aquele misterioso sotaque, quem sabe do noroeste do estado, terra das mulheres mais bonitas do mundo, segundo me constam pesquisas, conhecer olfativamente aquele perfume entre pescoço e cabelos, sem importar-se com a marca do shampoo ou da loção. Sem noção, divagava assim por pensamentos, mas ao mesmo tempo conhecedor do retrato da derrota. Não fui enquanto era tempo e alguém tomou-me esse espaço. Raios. Raios duplos e até triplos. Poderia ali estar um futuro relacionamento, um novo objetivo de viagem, uma perda de tempo virtual, no mínimo dos mínimos, era válido arriscar.

As olhadas de canto, o máximo que encarei nessa tríade contada, formavam uma imagem mentalizada pelo cérebro de que valeria a pena investir. Agora ela encontrara alguém para o resto de sua vida. De certo pegariam o mesmo ônibus e esse os confirmaria no caminho não só da mesma cidade, mas iriam pela estrada da felicidade. Desceriam na próxima estação rodoviária casados, com nomes escolhidos aos filhos e alianças medidas para serem compradas e trocadas e claro que aceito, pode beijar a noiva. Tudo bem, faz parte, segue-se para outra via. Afinal, eles estão mais próximos do box 2 e o meu destino reservava o box 4. Do ponto congruente que nos uniu em horário e local, era a sequência vital nos levando cada um para um canto e jamais daria certo. Abatimento, mas aceitação. Que eles fossem felizes. Quase um abrupto intuito de levantar-me para assim desejar ao mais novo casal. Talvez constrange-los evocando algum canto brega e ridículo como "com quem será?". Mas sequer sei os seus nomes. Não saber sequer os nomes é irritante. A idade, se prefere gato ou cão, chocolate ou morango ou baunilha ou creme, o signo, a cor favorita são questões irrelevantes quando não se sabe sequer que nome foi encerrado na cova e na gaveta do inacessível passado, inevitavelmente deixado para além das possibilidades futuras.

Somente quando o horário já estava sendo finalmente preenchido para nossos ônibus encostarem, os motoristas descerem e conferirem as passagens, é que pude observar a moça mais de perto. A poucos metros dela, urge-me a derradeira e fatídica surpresa: acompanhada estava a de cabelos escuros pela sua própria mãe. O exercício da paranoia rodoviária.

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