Uma situação que eu considero deveras injusta é a com os primeiros apresentados. A memória humana nos prepara para gostar mais dos que vêm por último, ignorando os ímpetos iniciais. Está confuso por enquanto, certo? Vamos exemplificar e ver se refletem e concordam.
Numa entrevista de emprego, é bem possível que se o jurado, o empregador não preencher corretamente as tabelas, as planilhas, dos pontos fortes dos candidatos, os últimos pareçam melhores, porque terão a palavra final a seu favor. É preciso reunir bem os dados e avaliar e reavaliar, talvez invertendo a ordem nas revisões. Os primeiros podem ser esquecidos.
Num desfile de escolas de samba, não raramente o sorteio coloca as que subiram da divisão de acesso para iniciarem. As que fecham as apresentações são afirmadas como as melhores. Um pouco da ordem dos shows, que possuem bandas de abertura e encerram os festivais com as mais aguardadas. Nesses casos, o princípio de conceder o lugar de destaque aos mais relevantes até se entende melhor. Em programas jornalísticos ou de entretenimento, colocam a notícia ou o quadro mais aguardado ao final, retendo os índices de audiência. Não podemos deixar que isso se aplique injustamente em outras ocupações da vida.
Atualmente, nossa gata em casa é a Melissa. Minha mãe teve vários gatos ao longo de sua sexagenária vida. Eu não tive as mesmas experiências e estou começando somente agora. Afirmo para ela, em tom de brincadeira, que Mel é a melhor que ela já teve. O que não posso avaliar como verdade ou não, pois não conheci os demais felinos dela. Ela balança e quase cede, com exceção à lembrança de sua infância, o Chiminho. Seja lá como escreveriam. Mas realmente ela anda bem afeiçoada à atual, o que pode levá-la a ceder em concordância com essa broma. Estou sendo injusto com os enterrados gatos passados?
A preservação da história é sim uma preocupação minha. Acabo de recordar música como a do Titãs em que Paulo Miklos canta que não se lembra quem ele era antes de você. O peso sobreposto do presente afeta, esmaga partículas do passado, postas em esquecimento. Certamente. Muitas filosofias inclusive advertem para a vivência máxima desse tempo. Embora concorde com a importância, não gosto de ser injusto com o passado. Ele tem toda a sua validade pela sucessão de acontecimentos que nos levam a compor o presente. As lembranças, desde que não nos sufoquem, não nos esganem e não nos apreendam de modo negativo nos passos a seguir, são válidas. Difícil manter essa balança, esse equilíbrio em funcionamento, de acordo?
É comum as pessoas saírem de um relacionamento e esculhambarem com a parceria anterior. Apontam muitos pontos negativos, se questionam como passaram tanto tempo a gostar da pessoa X ou Y. É difícil para elas enxergarem novamente o momento que agora já é passado. É difícil enxergarem sem a inocência do que causou o rompimento, sejam hábitos ruins do parceiro antigo, sejam escorregões fortes, como traição, por exemplo. A memória a respeito fica permanentemente afetada. Não há mais como voltar atrás.
Voltando às entrevistas de emprego, se um candidato prepara uma apresentação ou tem um currículo de tal forma, se outro candidato posterior o supera, parece que o primeiro nessa ordem está fadado ao fracasso. Fica um sentimento de "como ele não havia pensado nisso?" ou "como não se especializou nisso anteriormente?" e assim o posterior apresenta grande vantagem, tanto na escada valorizada quanto na ordem cronológica posta aqui em questão.
Em relação aos debates políticos, quem dá a última resposta, geralmente a tréplica no assunto, sai por cima como organizador do pensamento por último. Expõe melhor suas ideias, pode se sobressair, se sobrepor ao oponente e garantir seu posto de dono da temática. Não há mais réplicas na sequência, ou seja, treplicar é a grande chance de encerrar com chave de ouro. Debates consumados no campo do desenvolvimento das ideias, mas, ao mesmo tempo, dependentes do fator tempo, que, a uma hora ou outra, encerra a discussão sobre alpha ou beta.
Outros exemplos podem ser aplicados de diversas formas. Preferir uma viagem posterior à outra que fez num passado mais distante. Achar um relacionamento atual melhor do que o anterior. Uma rede social melhor do que a outra. Um animal de estimação melhor do que o passado. Pode ser também que a pessoa tenha evoluído e domado melhor seus cuidados para planejar melhor a viagem, para se relacionar melhor com a outra pessoa, para usar melhor a rede social ou para cuidar e aproveitar melhor seu pet. Mas são hipóteses.
Em contraponto, maiores saudosistas podem esquecer os pontos negativos da viagem antiga e sentir exclusivamente saudade. Como sente exclusivamente mais saudade da escola. Ou sente maior saudade de um amigo que nem conseguia ou conseguiria mais se dar bem, carregar papos maiores do que um breve cumprimento, por exemplo. Sentiriam a ausência do finado Orkut ou do bichinho que esteve consigo aos mais de 10 anos de existência do peludo. São perspectivas e é sempre difícil avaliar com um grau mais justo as passagens do passado ou do atual momento. Ó, bom aos que conseguem planejar e criar expectativas positivas e melhores ao futuro.
Acabei de ler o conto de Mário de Andrade e seria esse o melhor simplesmente porque agora o li e está fresco na memória, vívido e aplicável? Estou sendo injusto com os demais contistas passados nessa leitura composta por diferentes expoentes da literatura nacional? Se mudasse a ordem da leitura, mudaria eu a minha avaliação de que foi o melhor ou não? Enfim, são dúvidas amplificadas com o uso do "se" e que não teremos a resposta definitiva. Como estamos melhor, na soma de tantas grandezas nas equações, entre passado, presente e projétil do incerto futuro?
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