15/02/2022

Crônica sobre os Gabriel

Eram dois Gabriel. Mas eram muito diferentes. Processo amplamente descritivo. Um Gabriel estava sempre asseado, como se diz. Vivia limpo, de prazo cumprido com o banho. O outro Gabriel podia utilizar a mesma camisa vários dias da semana, não se preocupava muito com essa aparência ou imagem.

Um Gabriel não tinha pelos. Nem se pode dizer que era barbeado, porque a barba não lhe brotava em qualquer daqueles anos de ensino médio e mesmo no início da idade adulta. Gabriel apenas olhava e invejava o bigode, a barba que os companheiros tinham a surgir, mesmo aqueles que estavam no seu time, abandonavam o barco e pulavam para o outro lado, nem que fossem penugens, pequenas barbichas que brotavam. O outro Gabriel era o chefe do barco para o qual muitos chegavam. O outro Gabriel era barbudo, barba cerrada, disfarce de boa porcentagem de seu rosto encoberto por pelos grossos.

Um Gabriel era o filhinho da mamãe. Sua mãe estava sempre presente. Para buscar boletins, para conversar com professores, para auxiliar alguma coisa, para preparar um sanduíche, para perguntar como ele estava, para saber com quem andava, para tratar um machucado, físico ou espiritual. A mãe do Gabriel estava sempre lá. O outro Gabriel era o contrário. Um fujão. Chegou a fugir de casa duas vezes. Pulava o muro e ia curtir a noite. Voltava dois ou três dias depois. Os pais cansaram do Gabriel, até porque cansavam rápido. Suas fugas não eram mais acompanhadas de preocupação. Deixa que se divertisse, não perderiam mais noites de sono por ele, que perdia noites de sono nas fanfarras em que se metia. Até que os pais viajaram para não mais voltar e ele se emancipou, mesmo menor de idade. Era referência para os demais, descolando bebidas e cigarros.

Nisso obviamente também se difereciavam. O primeiro Gabriel era totalmente abstêmio. Era inclusive menino de igreja. Sempre bem vestido, predominantemente com roupas claras, com peças brancas. Grupo Jovem da igreja, violão e louvor ao Senhor. Bochechas cumprimentadas por velhinhas. Hóstia em dia a cada domingo. Missas de salmos cantados. O outro Gabriel também era músico. O outro pegava o violão e improvisava algum rock. O primeiro Gabriel até gostava de rock, mas era mais dos antigos brasileiros das décadas de 1980, no máximo respingos dos anos 90. O outro Gabriel também bebia dos clássicos, mas puxava para o satânico. Gostava do punk rock também e gostava de todas as quebras de paradigma, nem que fosse o grupo Queen com Bohemian Rhapsody, burlando com a indústria musical que tinha a toada por músicas curtas, de tamanhos comerciais para programação de rádio.

O primeiro Gabriel ouvia rádio. Comentários políticos, muitas vezes conservadores, pois era rapaz de igreja. Partidos do centro para direita. O outro Gabriel gostava de rádio pirata, de programação com linguagem chula, de palavrões à reviria. Mas também gostava de políticos conservadores. No caso os que aprovavam porte de arma, que este, o 'outro Gabriel' gostava ter consigo para se proteger. O pai esqueceu uma das armas na mudança. Levou uma, deixou outra. O Gabriel tinha ela no armário. Era ouvir barulho estranho - ou mais estranho que o habitual de noite - que o Gabriel já se direcionava para esse armário para ver qual que era. Nunca havia usado, mas exibição aos amigos era constante. Esse era o Gabriel.

O Gabriel da arma tinha mais amigos para mostrar a arma. O primeiro Gabriel era reservado. Andava no máximo com os amigos do Grupo Jovem. E não andava muito. Era tomar um sorvete, uma ida à biblioteca. Uma tarde para comer algum lanche na casa de amigo. Passar alguma tarde quente de sol. O Gabriel armado era mais amado também. Atraía a atenção de algumas gurias, mas na base da insistência, porque bonito não era. Tinha o nariz quebrado de uma briga que se meteu na infância. Cicatriz permanente. O resto do rosto escondido na barba. As camisas de bandas de rock se repetiam. As más influências, ou mesmo era ele próprio que já influenciava os outros. O álcool e depois as primeiras drogas. Da inofensiva maconha à coisas mais pesadas.

O Gabriel abstêmio mantinha-se na dele. Um refrigerante, para ele, já era droga o suficiente. Já estava se passando nos cuidados com o próprio corpo, tão cultuado e citado nas palestras da Igreja. A fortaleza, o campo de resistência, a estrutura pela qual se protegia o bem estar da mente. Enquanto isso o outro Gabriel virava noites, orgnizava festas, cruzava a cidade rumo a outros bairros. Escapava de consertarem-lhe o nariz.

O primeiro Gabriel tinha boas notas. Desde os primeiros anos de escola, sempre se manteve entre os primeiros, inclusive no Instituto Federal, onde ambos haviam passado. Gabriel poderia ser considerado um dos melhores alunos do Instituto, e, por se tratar de uma instituição que acolhia alunos da cidade e da região por conta do bom ensino gratuito, era um dos melhores alunos de toda aquela regionalidade. O outro Gabriel até poderia ter boa cabeça para estudar, mas, para ele, sem os pais em cima, tanto faz. Começou bem, na época em que passou na prova ainda se debruçava por vezes sobre os cadernos, mas foi abandonando este hábito. As notas piorando, a frequência mais ainda do que elas. Sumia do IF por semana. Os professores, assim como os pais dele, desistiam de perguntar.

O primeiro Gabriel passou a gostar um pouco disso, embora não confessasse ou mal tivesse a quem confessar. É porque, apesar de tantas mudanças, de tantas diferenças, de tão pouca semelhança, eles ainda se confundiam quando, vez ou outra, um professor desatento ignorava a presença do sobrenome: Gabriel! - os adultos chamavam - e ambos respondiam: - Eu?? 

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