Madrugada em que sonhamos com os mortos. Ou com os vivos conhecendo seus futuros. Foi o curioso caso que aconteceu com minha irmã.
Um céu cinzento, o alto mar, as velas embandeiras, bem tecidas, perigosamente estiradas contra o resfolegar do vento. O barco em deslocamento sobre o sofregar do ir e vir das ondas. O olhar dianteiro tentando antecipar as desventuras que nos apareceriam. Minha irmã toma a frente apoiando sua cintura contra a proa da embarcação. Estende o braço adiante como que para indicar a batida frase de terra à vista.
A ilha é um isolamento de tal modo que o barco não tem muito onde acostar-se. Começa a brecar nos inevitáveis bancos de areia, defesa impenetrável. Os solavancos nos preparam para a descida. Minha irmã é a protagonista, embora as palavras aqui sejam narradas por mim. Contra a vegetação altiva de coqueiros e outras árvores, os pássaros voam ora em círculos sobre nossas cabeças, ora de maneira desordenada e atônitos por tão bela vista, ao mesmo tempo temos que sincronizar nossas energias na real missão e também torcer para que não nos acertem com seus dejetos.
Na ausência de habitações na encosta, ao menos às nossas vistas, rumamos direto para um objetivo fúnebre: o cemitério local, que comporta, já visualizados ao longe, mais lápides do que provavelmente haja habitantes na ilha. A formação insular, também observamos, não tem embarcações companheiras em nosso retiro. Recordo que quando passava pelo cemitério da cidade, próximo a meu clube e local de trabalho, eu notava sempre a lista de velórios e enterros do dia, constatando os dias de mais ou de menos infortúnios na vida de nossos concidadãos. Se a missão até a distante ilha era conhecer o vasto cemitério, tivemos uma distinta exclusividade em relação às demais pessoas. Onde estariam os demais? Por que encarregavam os mortos a tão distante localidade? As perguntas surgiam aos montes enquanto as formas humanas eram limitadas a nossos passos que constituíam as mais novas pegadas naquele solo arenoso recém aparado pelas ondas marítimas.
Minha irmã guiava a breve caravana, constituída mais por mim e por poucos passageiros. Caminhamos em sentido íngreme para subir a encosta rochosa que levaria até ao cemitério. De uma coisa não havia sombra de dúvida: a pousada definitiva dos mortos contava com uma vista privilegiada que animava a nós, ainda vivos, em uma afanada instantânea do fôlego. Minha irmã estabeleceu contato com uma local que agora terminava o trajeto, já tecendo a voz baixa, exclusiva para nossa líder, sobre o lugar em que estávamos conhecendo. Provavelmente minha irmã passaria as informações para os demais tão logo pudesse conferir-lhe a oportunidade de transmitir.
Seguia a procissão de passos certeiros, agora sobre o chão rochoso, não mais de areia como no desembarque e primeiras centenas de metros. O silêncio combinava com a garoa que ora nos pingava a roupa já transpirada, ora vacilava em cair. O abafamento lembrava a alternância do clima da cidade em que crescemos. Nem o vento litoral dava conta de livrar-nos do peso que já era parte de nossas mentes. A protuberância do cemitério era impressionante. Tentei observar o semblante dos acompanhantes e todos eram inexpressivos, como se aceites de tal destino definitivo. Me perguntei se eu também estaria em estada definida ou teria o poder ou qualquer chance de apelar para a persuasão diante daquele juízo final.
Em uma casa de guarita ao portão de entrada, a guia espiritual curvou-se para dentro da casinha não sem antes gesticular a todos que esperassem pelo seu regresso para prosseguirmos. Um a um, ela se aproximava e cedia uma vela praticamente intacta. Poderíamos considerá-las recém acesas. Ela tinha determinante destreza e habilidade para se encarregar da tarefa. Com agilidade, ia e voltava com os candelabros a servir-nos. Pensei prontamente: repetição e competência. Mais repetição fabril do que qualquer habilidade sobrehumana.
Estremeci quando percebi chegar minha vez de receber o presente. Tentei agradecer, mas minha voz estava entrecortada. Eu seguia a observar a frente da procissão a uma certa distância, pois logo percebi que apenas duas pessoas, provavelmente um casal, estava atrás de mim na breve fila. A mulher com um aspecto cortez de freira novamente posicionou-se diante de todos para, com um gesticular tímido, como quase tudo que fazia, indicar o prosseguimento da jornada, já adentrando aos portões do cemitério.
Percorreu-me a impressão que essa quietude seria apenas para o caminho de ida e não haveria volta. Se houvesse, precisaria ser em uma tremenda batalha. Todos permaneciam muito calados, sem emitir sons, sequer grunhidos e com os rostos perfeitamente intactos quanto aos efeitos de tão lúgubre e macabra aventura. A quietude era cortante, o espaço para elaboração dos pensamentos quase formavam eco de tão alto que meu cérebro raciocinava aquele impressionismo todo.
Tentei ler as lápides, mas meus olhos desviavam de uns túmulos para os outros, os globos oculares pareciam que ardiam, parecia que as letras me escapuliam, me fugia a interpretação de nosso simples idioma. Em outras, a sopa de letrinhas se embaçava, minha visão piorava e eu não sabia como contornar esse problema incipiente e a curiosidade mórbida de meus pensamentos. Fui desistindo dessa ineficaz tentativa e voltei a atenção para meus trôpegos passos, para evitar maiores acidentes com a vela em mãos. Cheguei a segurar-me o riso porque, dentro de um cemitério vazio de almas vivas, as consequências de um incêndio seriam mínimas. Mas tão logo me apresentou essa ideia, formei o raciocínio de que os pingos da garoa deveriam dar conta de apagar nossas velas rapidamente. Não era o que acontecia. As chamas permaneciam sua dança, seu acovardado rebolar de maneira íntegra. Era impossível. Os pingos até apertavam, eram um bombardeio que não deixariam chances para o fogo sobreviver sobre essas condições. Insano.
E as pedras não pareciam ser afetadas pela umidade crescente. O que estava acontecendo? O que parecia somente um cemitério de encosta, ao sopé de uma montanha, um morro ainda maior, mas acima dos efeitos da ressaca marítima, agora era um caminho sem fim. De repente, nossa procissão parou e a mulher voltou a falar baixo, de maneira que o fim da fila, onde eu estava, não conseguia ouvir. Novamente circundei minha visão para os demais e, para minha surpresa, todos pareciam concordar, com um leve acenar afirmativo de cabeça. O único olhar atônito e a única testa franzida deveriam me pertencer naquele momento. Minha irmã cedeu passagem e não foi a primeira a receber uma espécie de benção, uma oração ao pé do ouvido. A mulher passava instruções precisas e as pessoas, sem pestanejar, apenas assentindo, prosseguiam suas diretrizes cemitério adiante - ainda havia uma eternidade de lápides até onde a vista alcançava. O sopé da montanha já ganhava proporções de ser a própria montanha. Provavelmente subimos de uma maneira tão menos inclinada após a primeira formação rochosa que agora nem percebíamos a intermitente subida que se desenhava. O mar se arremessava contra as areias muito abaixo, visível, mas não mais audível, pelo incrível que fosse.
Minha irmã foi a terceira, após ceder as primeiras vagas, embora não demonstrasse nervosismo, nada de mãos suadas, como eu podia observar, uma de suas marcas registradas, o brilho do suor não lhe brotava das extremidades. O rosto tão impassível quanto as faces dos demais. Era tudo inacreditável. Após receber o palavrear da discursante guia, ela pediu uma licença com um movimento de cabeça semelhante aos cumprimentos do povo oriental asiático e abriu passos em minha direção. Contou-me.
- Chegou minha vez. Fico por aqui. Queria me despedir.
- Mas o que está dizendo?!
- Você não percebeu?
- Eu... - Me sumiu a voz outra vez, como quando fui agradecer à espécie de freira.
- Não estaremos mais juntos. Eu vinha te avisando nos últimos dias, não vinha?
Permaneci emudecido.
- Agora preciso ir, estão me esperando.
Ela girou para retornar sua posição à frente da fileira, mas puxei-a rapidamente pelo braço. Instruí minha força como pude, mas ela reagiu de forma surpreendente, demonstrando precisão para escapar da investida.
- Preciso ir. - Reiterou.
Percebi que minha luta era absolutamente solitária. Enquanto tentava agarrá-la de volta para sairmos daquela insanidade, ela, além de disposta a obedecer seja lá o que lhe disseram, me vi envolto dos demais pares de braço que agora tentavam me conter, por, obviamente, estar atrapalhando o objetivo daquela derradeira jornada. Me senti completamente intruso, como já parecia desde os rumos do barco e do desembarque nas areias, mas agora com certezas.
Enquanto me esquivava dos braços peludos, magros, gordos, flácidos, de unhas vermelhas, sem esmalte, roídas ou escuras mãos trabalhadoras daquele grupo heterogêneo, levantei a vista ainda para deparar-me com o olhar fulminante da guardiã da casa dos mortos. Não menos horripilante - pelo contrário - foi perceber que da terra sulcada erguiam-se novos pares de braço. Primeiro um. Um direito, o esquerdo. Um esquerdo, o direito. E cabeças desfiguradas com o topo do couro cabeludo incompleto, com o crânio à vista, com um olho sim, outro não, com a falta da mandíbula, com os ombros deslocados, com relógios de pulso sobre ossos e não mais músculos e pele. Todo tipo de aparência daqueles porteiros se metiam a nosso encontro.
Cambaleei alguns passos, praticamente caí de costas, observando aquela cena inacreditável, aqueles olhares dos humanos que permaneciam aceitadores e inexpressivos, minha irmã que não batalhou comigo, mas ficou a assistir aquele inevitável desfecho. Os mortos, a meu nível estive próximo de tocar completamente o solo, esses de aspecto mais sedento, mas talvez fosse apenas a força de sua decomposição contra meu olhar aturdido.
Corri praticamente em linha reta naquele mar de túmulos que havíamos transpassado e eu não os conseguia ler no momento anterior. Novos grupos de cadáveres lutavam para alcançar meus passos cada vez mais ligeiros rumo a uma tentativa de libertação. Quando avistei a guarita e os portões ainda abertos, percebi a iminente oportunidade de fuga. A corrida me custava um esforço danado sobre as pernas, um suador contínuo e o abafamento da respiração naquele tempo absolutamente cinzento. Parei quase defronte à guarita de onde a mulher sacara as velas. Percebi dois funcionários de rosto em começo de estado de putrefação. As mãos do rosto não só não estavam coradas, como sediam rugas, afundadas, para dentro, uma pele que facilmente seria desmanchada até com uma colher.
- Você?! - A sua já está acesa. - Disse, apontando para uma vela. Outras tantas estavam sendo acendidas aos fundos, em uma peça como uma capela ou, no mínimo, gruta. Novamente não pude fazer melhor julgamento pois a visão estava turva.
Segui correndo, aproveitando aqueles últimos segundos antes de aparecerem novos "funcionários" para cerrarem os portões. Ainda pensei em minha irmã por lapsos de segundo, mas percebendo que não havia como salvá-la e talvez até minha primogênita tentativa seria rechaçada. A encosta abaixo, agora parecia bem mais alta, corria praticamente como se estivesse a saltar degraus de uma imensa escadaria. Tropecei, virei cambalhota, ralei os joelhos e cotovelos, mas não me importava com a dor, desde que a continuasse a senti-la. O que não queria era cair no ostracismo da dor nenhuma, ou o que fosse acontecer com os outros dos portões para lá. Alguns já cambaleavam a me seguir, mas tive a suposição de que não poderiam romper aquelas barreiras imaginárias, desse mundo completamente quimérico e ilusório.
Procurei pelo barco e, cada vez mais desesperado, não o encontrava. Apenas areia e águas. Pensei em me arremessar na água, me livrando das calças para maior agilidade sobre as águas. De repente, senti um toque no ombro. Parei. Congelei. Senti o coração prestar um solavanco como se quisesse romper qualquer barreira do pescoço. Pensei no lapso: "Agora que vou parar lá dentro, com vela, com tudo". No outro segundo, estava minha irmã a me encarar sem entender.
- Por que está tirando as calças?
- O quê?!
Me deparei com um píer de pesca. Algumas pessoas me olhando. Uma criança de uns cinco anos me apontando o dedo. Sua mãe ou tia a repreendendo, ao mesmo tempo que segurava o riso.
- Vista isso aí...
Subi as calças, conforme a ordem de minha irmã. Fechei a braguilha com os dedos nervosos, demorando segundos que jamais havia me custado.
- Não se preocupe - ela concluiu. - Você escapou. Dessa vez.
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