03/03/2021

Testemunhas oculares em mundo parcialmente cego

Tenho lido um dos gênios peruanos, Mario Vargas Llosa. É polêmico, é denso, é intenso. É do gênero humano. Personagens que transitam entre fazer o mal, o mal e até o bem. Creio que foi em filme do não menos polêmico sueco Ingmar Bergman que um personagem se refere que não havia o certo ou o errado, somente a ocasião e como agir nela. Instintos. Autopreservação. Sobrevivência. Vantagem própria. Situações.

Estava justamente pensando com o agravamento da pandemia e como penso na irredutível proteção a meus pais e demais parentes. Ao passo que me recordo de todos os amigos dependentes financeiramente dos mais velhos. A incerteza da pandemia de covid-19 sobre nossas vidas. Efeitos e consequências que podem ser devastadores. O amanhã que se molda completamente incerto. Escrevo do alto do fundo do poço. O pior momento pandêmico, o colapso, o agravamento total da falta de leitos, de vagas e de material humano: faltam profissionais inteiros física e mentalmente para combater os inacabáveis casos de covid. Os médicos, enfermeiros e demais deslocados, funcionários para atendimentos não aguentam mais a rotina extenuante, extremamente desgastante nos seus dia a dia.

Mas ao passo que penso primeiramente na proteção de meu círculo, meu grupo de proteção afetiva e financeira, e somo a esses restritos nomes um par de amigos próximos e mais os amigos menos próximos e mais os amigos de amigos, quem sobram como inevitáveis vítimas?

Escrevo isso do alto do fundo do poço, porque no dia anterior foram mais de 1700 mortes causadas pela doença. É o assunto que nos enquadra, sumariamente mortifica, nos põe contra a parede. Nos apunhala como se fôssemos alvos de um poderoso taco de beisebol. Direto na nossa fronte. No dia anterior aos mais de 1700 óbitos, mais de 1600 óbitos. E quantos serão mais? Diariamente, chegarão a ser mais de duas mil perdas? Apesar da crescente em ritmo vagaroso campanha de vacinação ainda se crê em alguma melhoria. Mas até lá será tarde demais para muita gente. E para quem? Dos nossos seres amados a demais conhecidos até a incrível massa, nuvem dos números mortíferos de cada dia.

O país definha e a população aceita o capitão do navio exterminar com todos como no clássico da literatura e cinema, Moby Dick. Ao invés de afundarmos com uma baleia branca nos oceanos terrestres, a criatura-besta-maior está no comando. Posturas imagináveis para o que sempre demonstrou ser em sua carreira política, compatíveis com o esperado, mas ainda inimagináveis, pelo contexto ampliado de pandemia. Tudo isso parece um pesadelo de alucinação coletiva. Estamos cataratas a baixo. Estamos naufragando. Estamos morrendo sem ar. Sem reação. Derrotados no calvário de cada dia que nos dai hoje. Perdoai-nos o voto de 2018, porque eu não consigo perdoar. Queria, mas jamais olharei para a humanidade da mesma forma. Perante todas as horripilantes questões recorrentes. Não consigo mais.

Professores e líderes da docência, do estudo e da ciência (re)começaram a ser importunados em processos abertos pela sindicância do governo da República. No Sul, observo em imagens veiculadas nomes conhecidos, como o idealizador do rugby em ensino Federal e o maior nome, referência acadêmica nas pesquisas de combate à covid-19. São estes educadores, são estes profissionais da educação que estão sofrendo ataques. Estão atacados por atacar. Por atacar a doença, por combater a pandemia, com a luz da ciência, do caráter operacional pesquisador, com a tentativa do êxito em um país fadado ao fracasso dos últimos anos e pela próxima década.

Estamos envoltos em um literato Mar Morto, onde a salinidade não nos permite fluir, avançar, respirar e progredir. As impecáveis trevas. A educação sofre constantes ataques, inclusive apoiada por aqueles que nunca quiseram prestar aumentos salariais aos educadores, aqueles que sucateiam a máquina pública. Aqueles que sabotam a vida da população, principalmente a mais pobre. Esses falsários, que hoje verbalizam pela execrável abertura das escolas no pior momento da pandemia, esses verdadeiros criminosos deveriam ser derrubados e impugnados, defenestrados de seus cargos hoje, porém, diante da tão pouca, escorregadia e sumida esperança, que ao menos as páginas da História futura saibam onde posicioná-los. Imputá-los em um papel, em um protagonismo negativo, como pivôs de um destaque que nunca mereceram ter, mas já que os holofotes estão neles por ditarem as regras, que sejam cercados pelos currais da desgraça. São culpados e jamais os esqueceremos.

Desde 2018 estou intalado com eles. Meu sorriso nunca mais se abre, a não ser por mero descuido e ocasião de segundos. Conseguiram. Se comecei esse breve relato enaltecendo os complexos e demasiado humanos personagens de Vargas Llosa, brilhante peruano, termino ainda incrédulo com a falta de humanismo, empatia e responsabilidade de nossos desgovernantes e não rara parcela da população. São unilaterais. São unicamente ruins. Desprezíveis.

Se chegaram até o final dessas linhas, estou, do alto do então fundo do poço (eles têm as pás em mãos a cavá-lo entusiasmantes a cada dia), estou na torcida por vocês. Isso e o que mais me restar à disposição. Como afirma Igor Natusch, minhas caras testemunhas oculares do fim do mundo.

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