Jair Filósofo
18/07/2025
17/07/2025
Uzak (Distante)
Instruções
Elencar as diferentes distâncias abordadas no filme:
1- distância dos personagens principais
2- distância do primo se saísse a trabalhar no mar em navios
3- distância do primo pra conseguir um emprego
4- distância do fotógrafo pra reconquistar antigo relacionamento
5- distância do primo para se adequar ao outro estilo de vida
6- distância do fotógrafo para esquecer
7- distâncias da vida em Istambul
8- distância de largar o vício em cigarro
9- distância final entre os dois; separação
Uzak é um filme turco de 2002. Yusuf sai do interior do país em busca de emprego na capital Istambul. Lá, de surpresa, ele procura pelo primo Mahmut, o qual vive com um espaçoso apartamento, trabalhando como fotógrafo freelancer. Yusuf planeja trabalhar no porto da cidade, mas as expectativas de emprego se mostram frustradas.
Identificados apenas como primos, sem aproximação, Yusuf e Mahmut passam o filme todo resguardando certa distância. São diálogos frios, situações de anfitrião apenas forçadas pela boa educação a que se deve e a distância entre eles se alastra pelos círculos de amizade, hobbies e diferenças culturais. Em certo momento da película, Yusuf reclama que a cidade grande havia "mudado" o jeito de Mahmut. A verdade é que o anfitrião era um homem bastante misterioso e solitário e jamais deixa o primo se aproximar demais de suas questões pessoais, inclusive ao atender telefonemas sempre com a porta fechada e até dentro do banheiro. Era 2002, quando a moda do telefone sem fio já estava lançada, embora os aparelhos celulares não fossem unanimidade para classe média.
Yusuf toma seu espaço no apartamento e passa dias a sair e procurar emprego. Mas a tentativa de empregar-se no porto é frustrada de prontidão. Não tem emprego e ponto final. Ok, afirma Yusuf, que teve de viajar até outro local em busca do escritório onde o poderiam empregar. Ele faz passeios sempre solitários, conversando com outros portuários em cafés e perseguindo mulheres à distância. Um desempregado de meia idade não era o partido preferido para tomar atitudes.
Sem credenciais e sem quem o pudesse apresentar a novas oportunidades, seja de emprego ou de relacionamento, Yusuf fica à margem da sociedade e, sem opções para enviar dinheiro para sua mãe na cidadezinha distante, acaba por ocupar mesmo o quarto no apartamento do primo, cada vez menos paciente com a inusitada e atrevida visita.
Embora Yusuf não soubesse, Mahmut vai ao encontro de sua antiga esposa. Eles passaram por um aborto e ela acredita que não possa mais ter filhos. Mahmut descobre que ela (Nazan) vai ao Canadá com seu novo marido. Ele mantém a esperança da ex-companheira ao afirmar que lá talvez um médico diagnostique diferente, que ela talvez ainda possa ser fértil. A conversa entre eles é em tom melancólico e não vai adiante. Mahmut demonstra não superá-la.
Algumas das cenas mais constrangedoras são das interações entre os amigos do fotógrafo Mahmut com o primo forasteiro. Ele fica totalmente deslocado, sem participar dos assuntos culturais em foco. Em uma das saídas, desocupado, Yusuf ajuda Mahmut a realizar sessões de foto, trabalhando com flashs e carregando equipamentos. Isso garantiu uma grana mínima para sorriso do visitante.
O filme avança e a melancolia de Mahmut não passa. É interessante ter em vista que suas atitudes grosseiras e pouco paciensiosas com o visitante são somáticas de sua frustação amorosa, com o relacionamento que resultou em divórcio e a impossibilidade de reatar. Yusuf sabe nada a respeito da vida pessoal do primo e, portanto, não pode sequer entender ou tentar apaziguá-lo. Entre eles, o clima se torna cada vez mais hostil e as grosserias e ressentimentos se multiplicam. Um rato escondido no apartamento, cujas ratoeiras ficam espalhadas pelo piso, preenche vazios no espaçoso recinto. Talvez a luta contra o frágil roedor possa unir os primos. Talvez.
Istambul é uma cidade muito grande, uma das maiores entre Europa e Ásia, unindo culturas e trazendo particularidades relevantes, de vendas, gastronomia, portos de entradas e saídas da Europa e Ásia para o mundo. Istambul é grande e também impessoal, como se espera de uma cidade grande. Ela também reúne clima variado, do qual também se orgulham ali próximos os iranianos: estações que pelo menos eram bem definidas (hoje em dia já não se sabe). Assim, o filme passa do rigoroso e cheio de neve inverno até a crepuscular primavera. Na impessoalidade de Istambul, Yusuf se perde por cafés, shoppings e ruas, persegue mulheres e amplia sua frustração, tapete estendido da falta de emprego.
Entre belas fotografias da metrópole turca, está também os momentos filosóficos dos primos e o vício em cigarro. Mahmut até que tenta parar... Mas não é fácil. Assim como não é fácil manter os cinzeiros e a casa arrumada na presença do estabanado e inconveniente primo. Ao final, a solidão que cada um sentia é um hectare cravado em seus peitos. Olhares distantes em direção ao nada, onde só as mentes sabem por onde divagam. Será que a distância entre os primos ainda pode se transformar em consolação ou saudade? Um filme frio entre familiares, solidão e metrópole. Entre o capitalismo que rejeita e as estações que mudam totalmente o jogo.
🌟🌟🌟🌟
Uzek
Lançamento: 20 de dezembro de 2002
Direção e Roteiro: Nuri Bilge Ceylan
Direção de Arte: Ebru Ceylan
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Belas paisagens da grande Istambul e muitos silêncios compõem o filme turco |
15/07/2025
12/07/2025
Fireworks Wednesday (2006)
10/07/2025
Beautiful City (2004)
Beautiful City é um filme do diretor iraniano Asghar Farhadi. Mais uma obra-prima do cinema do Irã, pejorativamente conhecido por ritmos lentos, mas apreciadamente elogiado por temas humanitários, levados na presente película ao extremo. Considero este, ao ponto de terminar de assistir, como o filme com questões humanas, de escolha, de concessões, como o mais difícil nesse aspecto. Qual o limite do sacrifício para salvar outra pessoa? Quais são os limites da memória e o quão saudável pode ser - entre aspas - o esquecimento?
A'la é amigo de Akbar. Ambos foram presos no centro de detenção juvenil. Akbar está condenado à morte, por ter assassinado a filha de um homem, com a qual namorava e pretendiam casar. Akbar cometeria o suicídio e mataria a menina junto, para que ela nunca mais pudesse conviver com outro. Interceptado, Akbar matou somente a companheira, não tendo conseguido efetuar sua própria morte. Ao longo de dois anos no centro de detenção, até completar 18, tentou o suicídio algumas vezes, monitorado, impedido e sem sucesso. Então, ao chegar à maioridade, é levado embora, onde, pelo julgamento das leis, seria executado na forca. Aplicações ainda existentes do milenar Código de Hamurabi, que ouvimos na escola.
A'la se torna o personagem principal do filme. Condenado para o centro de detenção por roubos, ele está prestes a sair. Faltavam 28 dias. Ele combina com o diretor do Centro que sairá por uns dias para convencer o pai da jovem assassinada por Akbar, a desistir da pena de morte para o assassino. O perdão do velho pai de família serviria na Justiça para descondenar Akbar, que aguarda trancafiado e sem esperanças.
A'la, para obter todas as informações que precisa em busca do perdão para Akbar, acaba se envolvendo com a irmã do amigo. Se envolver leia-se da forma romântica que poderia ocorrer entre dois jovens com objetivo único: a libertação de Akbar. Alerta-se que o filme não é romântico, é sobre os extremos que as decisões podem custar. Será que A'la pode abrir mão de escolhas, como a mão da jovem em casamento, para salvar a vida do amigo? Será que a irmã de Akbar concordaria em casar A'la com outro e continuar seu martírio com um homem que ela não ama?
Quanto ao perdão, qual o limite de sanidade, do religioso, do vingativo e da concessão que um pai pode fazer pela filha morta? É possível perdoar o assassino? Este senhor que já havia perdido a esposa do primeiro casamento, vivia com a segunda e, com esta, possuía uma segunda filha, com deficiências físicas. Uma vida tão sofrida justificaria o sentimento de Justiça pela morte do assassínio?
A segunda esposa do pai sofrido também estava infeliz. Ele sendo tão infeliz impedia a continuidade da vida familiar, amargava ainda mais um ambiente já naturalmente afetado pelas deficiências da segunda filha. Para adiantar a condenação de Akbar para forca, um dote financeiro poderia ser depositado para acelerar a tarefa da Justiça. O homem iria preferir reunir a grande quantia para arriscar uma cirurgia de salvação para sua segunda filha ou para condenar de vez o assassino da primeira? Como apontado logo ao início desta resenha, é uma trama muito bem costurada e que testa a empatia e os cenários de atuação que porventura poderiam ocorrer na vida real.
Ao longo destes anos, observando histórias reais e fictícias, desenvolve-se a apreciação das questões sem a faca erguida para o julgamento rasteiro e precipitado. Ao longo do filme de Asghar Farhadi, em nenhum momento me senti confortável para bater martelo sobre as decisões que estavam ou não sendo tomadas. Não há santos. Todos possuíam suas razões. Mesmo a bondade de A'la ao arriscar tudo pelo amigo era contraditória ao ser um ladrão condenado por roubos e também deixar-se envolver romanticamente com a irmã do amigo. O sentimento dele também era o de tentar salvá-la de um casamento arranjado, problemático e triste. E o sentimento de tentar ajudar a família do pobre homem condenado, com a lembrança da esposa e da filha falecidas e tendo que cuidar de uma terceira com limitações. As limitações eram como a rua que cortava a frente da casa da irmã de Akbar: com um trilho. Um trilho que pode levar aonde? Quantas e quais fugas são possíveis? Quantos cadafalsos devem ser encarados de frente e sem escolhas? Quais os limites da religião, da Justiça e das palavras do Corão?
Discussões políticas, jurídicas, religiosas, financeiras e familiares postas em 1h40min de filme, agonizantes pelo drama e suspense suscitados. O desfecho em aberto segue a torturar o espectador sobre como teria agido e como será que termina o destino dos personagens?
Nota final ficaria em 4,5, mas a permanência do que envolve e nos afeta sugere 5.
🌟🌟🌟🌟🌟
09/07/2025
Não adianta
Na di en ka
Eu quis casar com você
Não adianta
Fugir do destino de querer
Na di en ka
Por ti eu espero, a gente se senta
Vítimas de Tormenta
Vittorio de Sica, etcetera
Na di en ka
Por ti eu espero, a gente aos 60
Anos
Um pedaço de pampa
A tarde lenta, o alvorecer
Um pedaço de pampa
O sol sem obstáculos no horizonte
Saudade vai daquilo que já partiu
Manhã, café, sua voz é meu vinil
Idade vai mas a gente não definiu
Um pedaço de pampa
Nos geoguessr que pariu
08/07/2025
Primavera Cambodiana
Filme de Chris Kelly, que demorou seis anos para ficar pronto. Isto porque o acompanhamento foi completo durante um período belicoso entre os cambodianos e o primeiro ministro Hun Sen. O tema do documentário é um projeto audacioso de prédios ao redor de um lago, parcialmente até aterrado, enquanto os moradores, originários ribeirinhos, eram obrigados a deixar suas casas, que subitamente seriam destruídas enquanto eles seriam mal alocados ou até não indenizados. Um ultraje das ocupações por projetos de construção civil desordenada, tema comum para países ditos em desenvolvimento quando áreas propensas à ocupação são invadidas pelas multinacionais e/ou projetos mirabolantes, geralmente em busca do lucro acima de quaisquer preocupação com o meio ambiente. Assim, a capital do Camboja vivia essa situação que afetava dezenas, até centenas de famílias.
O Camboja é um país asiático pouco abordado nos noticiários, mas todos os tristes relatos foram gravados, aliás, uma modernidade a serviço da prestação de provas por parte dos interessados em demonstrar as ações truculentas da polícia e dos subordinados ao tiranismo governamental, enquanto pequenas veias de ira rebelde pulsam para tentar evitar o colapso de comunidades, como a ribeirinha demonstrada. A presença de celulares nas mãos da humilde comunidade, e até do monge protagonista na trama, chama a atenção, pois também se imagina como eram as injustiças cometidas em protestos antigos em que apenas a palavra de ordem oficial era válida, sem provas a refutar.
"Nós monges dependemos das pessoas. Se elas não têm o que comer, nós também não temos", afirma o monge Luon Sovath, espécie de protagonista no documentário cambodiano.
Quanta diferença dessa visão humilde do monge para o chamado evangelistão que se tornou o Brasil, com os pastores a extorquir a população mais carente com dízimos e contribuições abusivas sobre o salário dos mais pobres, necessitados de auxílio e com suas parcelas mínimas surrupiadas.
"Eles não querem que os monges se envolvam em questões sociais. Mas, para mim, as questões dos aldeões são minhas questões."
"Existem 40 mil monges no país e o comportamento deste pode comprometer a reputação de todos. A religião agora pertence ao governo."
Quando um julgamento era armado para condenar os considerados baderneiros - que apenas defendiam seus direitos de moradia e terra - um dos oficiais apresenta uma lei escrita que afirma que os monges não podem participar de protestos, manifestações políticas, greves ou quaisquer movimentos que causem desordem ou conflitos. "Você acha que esse é um comportamento correto para um monge?"
"Como defensor dos direitos humanos, amo a todos igualmente. Quero viver em um país onde todos sejam respeitados. Minha missão é proteger vidas como o Buda tem a missão. Eu prático o budismo mais puritano" - insistia Sovath, que começou a ser perseguido, ameaçado de excomunhão e prisão, retaliado até com ameaça e morte, até finalmente passar um tempo fora do país, em asilo político nos Estados Unidos, onde seu celularzinho servia de câmera agora para os prédios da grande Nova York e suas orações e palavras de fé e solidariedade serviram a discursos para público político, jantares e alguns noticiários internacionais. A situação do Camboja e a injustiça não poderia passar totalmente impune. Ou poderia, vide a desgraça da ocupação e destruição das terras palestinas, envolvendo milhares, até milhão de pessoas?
Segundo estimativas, cerca de 95% dos cambodianos professam a religião budista. Ou seja, seguem preceitos e respeitam as colocações dos monges. Sovath era uma voz de liderança muito respeitada pela comunidade afetada. A simples presença dele encorajava os locais a lutar pelo que consideravam certo e justo.
"Logo não existirão mais pobres aqui. Eles não querem gente como a gente vivendo em sua bela cidade."
Para parte final do documentário, cenas fortes são registradas quando algumas da moradoras, sendo mães de crianças, haviam sido presas. Passaram meses fora, encarceradas e as crianças tomaram voz ativa, com uso de alto falantes e participações em protestos: além de defender as casas, defender suas matriarcas.
Isso lembra um filme nacional que falava que deveriam derrubar as pátrias pelas mátrias, trocando de forma inteligente a origem e o sifnificado geral da palavra. Interessante. As crianças, cada vez mais novas, lutavam por seus direitos, pelo direito à moradia e de voltarem a conviver com suas mães. Imaginem a agonia mútua entre essas diferentes gerações das mesmas famílias afetadas.
Outro ponto peculiar do filme sobre o Camboja é quando um representante do primeiro ministro do país, ou da prefeitura da capital, algo assim, reserva um discurso, um suposto acordo com os moradores, mas, quando convoca alguém para falar em nome da comunidade presente, escolhe uma pessoal com quase nenhuma relevância ou liderança para as moradoras. Essa pessoa leria uma carta de agradecimento ao governo. Ela é calada pela plateia que protesta sua eleição como representante popular. Isso ainda serve de pretexto para o político acusar os moradores de serem desunidos. Sendo que foi o governo que elegeu aquela representante, provavelmente com alguma espécie de propina, com a compra de sua opinião mediante alguma vantagem presente ou futura. As demais moradoras alertam para as câmeras: "bem que ela andava sumida. Deve ter se vendido ao governo". Quantas pessoas passam por situações semelhantes no Brasil e em outros países? Quando o dinheiro compra opiniões, votos e decisões políticas, seja de pessoas atingidas na moral, na qualidade de vida, ou até ou principalmente nos congressos entre os magistrados. Nas decisões de juízes subornados. Subordinados a patrões visíveis ou invisíveis.
O filme cambojano ajuda a explicar porque o Camboja, de quase 20 milhões de habitantes, aparece entre os Estados mais pobres, desiguais e pouco democráticos, corruptíveis na Ásia. Uma oposição direta aos bons resultados, por exemplo, da promixidade de Singapura, conhecida por altos padrões de tecnologia e redes de internet. Quando se observa de longe, se costuma arrematar países e populações com preconceito, estereótipos e unicidade, como se as pessoas também fossem diretamente responsáveis por seus governos e decisões. Porém, de perto, caso a caso, se percebe a imensa desigualdade, a falta de transparência, critérios e complacência com o povo. São milhões de injustiçados pelo mundo. Sejam trabalhadores em regime análogo ao escravismo, pessoas impedidas de voltar a suas terras e casas, de professar suas crenças e hábitos. Com olhos semicerrados, a ONU e outras organizações monitoram tristes episódios. Nós, sempre que possível, aqui abordaremos.
A nota final para o Doc Primavera Cambodiana, que inclusive ocorre em época muito semelhante, adjunta aos protestos iniciais brasileiros de 2013, ou da mais famoso Primavera árabe na Líbia, a nota final fica em:
🌟🌟🌟🌟🌟
Visto em Julho, 2025.
Disponível no MUBI
06/07/2025
Historia y Geografía (2023)
Um filme contemporâneo de Chile 🇨🇱. Direção de Bernardo Quesney. Uma atriz de televisão tenta voltar à ativa com uma peça ousada sobre a colonização do país andino. A história de sua peça teatral seria de como os povos originários derrotaram o saqueador e governador espanhol Pedro de Valdivia, um dos fundadores da capital Santiago.
Conhecida pelo papel de Huachita, uma personagem cômica de um humor grosseiro que passava na televisão do Chile, com desafios aos bons costumes, mas mais extravagâncias ao papel feminino do que críticas bem elaboradas. Assim, conhecida pela comicidade, Gioconda Martínez (Amparo Noguera) jamais era levada a sério. Qualquer projeto que ousasse fazer seria sempre castigado pela difamação de seu passado perseguidor. Com o intuito de movimentar sua vida financeiramente com essa peça, ela pede ajuda ao prefeito que buscaria a reeleição na próxima oportunidade. Pressionado por um possível afair passado, o prefeito destina a verba ao projeto, mas é apenas o começo dos problemas.
Treinar um grupo de atores teatrais, mesmo ou justamente porque possuíam experiência, selecionar o roteiro e os atores a cada papel são missões que estão fora do alcance da atrapalhada heroína, sempre perseguida pelas horrendas sombras do pretérito. Inimizades, conflitos sociais, raciais, envolvimento de imigrantes haitianos - tema comum para Rio Grande do Sul e outros estados brasileiros - aparecem na trama, que vai mais do constrangimento do humor do que um drama que se pudesse desenhar. Apesar do objetivo humorístico, a vergonha construída é imperial, causando o desconforto do que seria proposital ou não. Talvez aí esteja a mágica proposta por Bernardo.
A ideia de filme dentro de filme já foi abordada por este escriba recentemente ao relatar o longa Em Busca da Fome, de produção da Índia. Pois desta vez trata-se do velho tema da produção teatral dentro do espaço fílmico. Os ensaios, os dramas pessoais, os preconceitos apresentados por parte dos atores, os temperamentos explosivos são abordagens do filme de 2023. A vida dupla, a intromissão do pessoal no profissional, e do profissional no pessoal estão presentes.
Com diversos conflitos, do familiar às relações trabalhistas, os financiamentos obscuros, o valor da arte como temas marginais, o longa chileno perpassa a vida confusa da personagem principal, Gioconda Martínez. Habilitada diretora, Catalina Saavedra também aparece entre as atrizes do filme. Com polêmicas entre relações e algumas cenas de nudez, o longa encaminha seu final explosivo em mais uma bomba de constrangimento, o que lembra até a cena de palco do final de Substância- embora o norte-americano tenha sido lançado depois, diga-se.
É essencial não perder de vista a temática sobre a colonização, o abuso das autoridades espanholas para cima dos povos originários, situação comum com tantos países da América Latina, e sobre o Brasil com maior influência do desmatamento proposta pelas forças de Portugal sobre os indígenas. O termo indígena mais constantemente usado no Brasil, na abordagem correta chilena trata-se por povos originários. Embora no Brasil também ouça-se mencionar dessa forma, mas com predominância do uso "indígena" para designar os nativos.
É também essencial centrar a análise nos malefícios da fama, da baixaria apresentada em programas televisivos, na impossibilidade de passar uma borracha sobre passados vexatórios, tudo isso envolvendo a desarrumada carreira da constrangedora Gioconda Martínez, uma atriz decadente com delírios de grandeza, quando sempre que se apresenta lembrada é por situações estapafúrdias.
Nota final para História e Geografia (2023)
⭐⭐⭐½
04/07/2025
In Search of Famine (1981)
Em setembro de 1980, uma equipe de filmagem aluga um palácio para gravações, internas e externas, em paisagem do interior da Índia. Em volta do estimado castelo semi-abandonado, a população vivia em condições antagônicas, justamente o objetivo a ser mostrado pelas filmagens. In Search of Famine (Em Busca da Fome) é um filme indiano com direção de Mrinal Sen, um dos principais nomes deste Cinema Novo que surgia na Índia. Corretamente mediante pesquisas, influências corriam para aquele lado do mundo, como o neorrealismo italiano e as novas ondas da França que também respingavam ao Brasil; cinema com críticas sociais e elementos cotidianos.
Um filme sobre um filme também é um tema comum de apreciação dos críticos. Filmes assim fizeram sucesso como em Noite Americana, de François Truffaut ou também uma obra do alemão Rainer Werner Fassbinder, em que equipes de produção e direção e atores demonstram entendimentos e desentendimentos nos bastidores. Em In Search of Famine, um jovem diretor quer retratar as agruras da fome, em especial no período 1943, como consequências de guerra: elevação de preços e escassez de distribuição na produção. Enquanto a equipe se reúne uma noite em um quarto, é disparada uma frase derradeira: mesmo sem a Segunda Guerra adentrar em território indiano, sem tiros ou bombas disparadas, naquele ano de 43 morriam cerca de 5 milhões de bengalis, estes vítimas da Fome.
O desenrolar do filme expõe a diferença de classes, um cinema que, para ser produzido, necessitava de certas técnicas, equipamentos e orçamento, algo totalmente novo ou em falta nos arredores, na aldeia. A fome de 1943 não estava totalmente superada. Um jogo com isso ocorre durante outra reunião da equipe responsável pelo filme. Sem gravações naquela noite, a atriz principal propõe o jogo: adivinharem de que ano era cada foto. Notam as semelhanças entre 1943, 1959 e o período atual das filmagens: 1980. A fome não estava superada, como também não estaria nos próximos tempos hindus.
A diferença da vivência e dos valores sociais apresentados entre a equipe de cinema e os aldeões causa conflitos. Quando procuram uma jovem para desempenhar no filme o papel de prostituta, os empolgados indianos pelo cinema se voltam contra. Não querem que as filhas, que as moças da aldeia sejam representadas dessa forma. Nem cachê, pagamentos podem comprar essa parte da honra, em conflito, embora ali estivesse apenas o trabalho da ficção. A diferença nos costumes, na superação da fome também é evidente. Tensões sociais surgem, a polícia local por vezes é acionada para apaziguar qualquer tentativa de rebelião. O clima é adverso e causa reflexão nos trabalhadores da sétima arte.
Um sábio da região é convocado para aconselhar a equipe de filmagem e ele ganha destaque na parte final do filme, com visão muito apurada a respeito do panorama geral e dos possíveis conflitos surgidos a partir das diferenças entre as castas indianas. Escutar o velho sábio é entender o objetivo do cinema em Mrinal Sen. O filme dentro do filme cumpre seu objetivo. Um dos baratos dessa temática é exatamente embrulhar, misturar na mesma panela a realidade e a ficção. Muitas pessoas não gostam da mistura de gêneros cinematográficos, quando acusam filmes de não terem roteiro definido, mas considero o mix de sentimentos e temáticas justamente o plus para essas obras. Não saber onde começa ou termina realidade e ficção é o feito maior dessas iniciativas. O filme dentro do filme, o rompimento de paredes pode ser um acerto arrematador. É o caso de Em Busca da Fome, obra em cinema já colorido, diferente dos anteriores vistos de Mrinal Sen, em Entrevista e Calcutá 71. Porém, todos foram aprovados com aclamação de notas.
Nota final para In Search of Famine (1981)
⭐⭐⭐⭐½
03/07/2025
A Garota da Fabrica de Fósforos (1990)
Um filme bem ao estilo do finlandês Aki Kaurismaki, cineasta de diversos lançamentos, do drama e da comédia. Neste filme de 1990, a personagem principal é Iris, uma adulta que vive com os pais, trabalha exaustivamente na maçante missão de comandar uma esteira de caixas de fósforo. Quando tenta se divertir, não é notada pelos homens; quando recebe seu salário, mira um bonito vestido colorido em uma vitrine, o compra, mas é reprimida por seus pais; o velho o chama de vagabunda e a mãe prontamente adverte que ela devolva à loja.
Apesar do aviso, a loira Iris vai a uma festa com o vestido e chama a atenção de um homem esquisito. O breve relacionamento deles é um tremendo fracasso, conforme ele revela, em encontro seguinte, que nada mais lhe dava pena e desinteresse do que o amor que ela sentia; Iris fica arrasada. Mas tudo poderia piorar na crueza deste filme de Kaurismaki, conhecido pela ironia, destinos trágicos e atrapalhados de seus personagens marginais. Iris descobre estar grávida. Apesar da represália sofrida pelo antes companheiro, ela escreve uma carta e lhe entrega em mãos. O homem é categórico na resposta: livre-se do filho.
Socialmente analisada, a condição de Iris é de uma trabalhadora sem perspectiva de crescimento na empresa, com dificuldade para fazer amigas, não recebia apoio sequer de casa, por onde não é explicitado, mas provavelmente era considerada uma solteirona sem solução. Ao se acidentar, parar no hospital e tomarem conhecimento do azar de ter engravidado no único encontro em que isso era possível, os pais de Iris desejam que ela deixe a casa e arrume outro lugar onde morar. Ela até conta com ajuda e começa a bolar seus planos de vingança contra os que a humilharam em sua trajetória.
É um filme cru, na crueza e na crueldade, um filme frio como o clima portuário e provavelmente ventoso da Helsinki, capital finlandesa, confins de parte do mundo coberto de gelo. A atriz Kati Outinen, que realizou outros trabalhos com o diretor Kaurismaki, dá vida a uma personagem quase inanimada, uma espécie de Macabeia, da Hora da Estrela de Clarice Lispector, em plena terra antes pertencente aos russos (incluso as Lispector sendo de origem ucraniana, pois mirem a coincidência a que se chega).
Iris precisava de pouco para se contentar: uma refeição simples, um café, um ombro amigo, um homem que a notasse, a consideração e o respeito familiar. Ao perder cada sonho, degrau a degrau, a saída definitiva foi mirabolar planos de vingança aos desafetos. Em uma cruzada feroz por Helsinki, Iris não deixaria barato sequer para futuros homens interessados em sua pessoa: desejos de vingança completa. Mas, é claro, vindo do podador de sonhos Kaurismaki, nada de brilhante e excepcional, apenas a vida sendo coberta como um campo pela geada. As trilhas sonoras típicas contribuem para isso.
Nota final para Garota da Fábrica de Fósforos:
⭐⭐⭐⭐
02/07/2025
Calcutá 71
Segundo filme assistido de Mrinal Sen, Calcutá 71 foi lançado no ano seguinte ao nome, ou seja, 1972. O longa de mais de duas horas inicia como uma sequência do final de Entrevista (Interview), com um tribunal que julga o caso do personagem principal, Ranjit Mallick, que destruiu a fachada de vidro, a vitrine de uma loja de roupas, quando se vingava do terno que o manequim usava e ele não possuía em mãos para realizar a devida entrevista, derradeira para os rumos de sua acanhada vida.
O manequim estava convocado ao júri como vítima, testemunha da ira do revoltado Mallick, julgado entre as barras de ferro de uma ridícula jaula. O filme, na verdade, não se foca dessa vez nas peripécias do rapaz. Ele desenvolve um panorama da vida na Índia, em que a pobreza, a miséria e as dificuldades de sair delas são o epicentro da trama. Ao longo de décadas e mais décadas uma família ilustra a desgraça da estada indiana, em que se pode ressignificar inclusive a chuva feroz que muitos atribuem ao aclamado filme Parasita (2019).
A família de indianos sofre com a desproteção em uma noite chuvosa. As telhas não dão conta, a água infiltra pelo cômodo onde todos os familiares tentam dormir, uns ainda aconchegados, outros em vão na luta contra a força aquática. Os guarda-chuvas também não suportam a pressão da água sobre suas cabeças. A única solução naquela periferia, uma espécie de favela com pequenas casas conjuntas, era abandonar a residência. Assim a família de pai, mãe e filhos junta poucos pertences, o cachorro, e partem para tentar alcançar um local seguro. Lá, se defrontam com várias pessoas na mesma situação. Abandonaram suas casas e se reuniram em tentativa de abrigo da devastadora tempestade. O pai era o mais conformado, mas também o mais surpreso: "quanta gente!", é o que se resume a dizer.
Na ilustração da passagem do tempo, o filme avança décadas, o que postula a dúvida se a saída da ocupação britânica realmente libertou os indianos. Se as agruras da vida permaneceram sobre outras formas de dominação, seja pelo capitalismo tardio, na tentativa de imitar ocidentais, ou mesmo na invasão desses ao lograrem suas multinacionais que comandam, exploram recursos, trabalhadores e espaços fisicos dos indianos. A miséria de uma família que já não contava com o pai de família é postada em um dos capítulos em que um parente distante os visita. Ele viajou de trem de Nova Déli para Calcutá, a cidade escolhida maior para trama. O parente se surpreende com a desgraça que assola os conhecidos, permanecendo como espectador que pouco tinha a se meter e a contribuir durante sua curta estadia em Calcutá. Briga entre vizinhas, entre a mesma família, desentendimento digno de recordar novelas brasileiras, tudo na gravação de orçamento simples feita no alvorecer dos anos 1970. Na hora que o básico falta, qualquer boca a mais a ser alimentada, ou cama a ser improvisada, pesa e vira motivo para desavença.
A impressão desse filme é de uma espécie de Cinema Novo, como o proposto por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos no Brasil, ao ritmo dos bengalis. A extrema pobreza, a terra inexplorada pelos nativos, assim improdutiva a seus consumos, o desespero que se sobressai a quaisquer possíveis luxos ou escolhas. Se destaca no capítulo da miséria familiar a informação que corria sobre pessoas que lutavam para ter uma única refeição, mendigos, pedintes que morriam de fome a cada dia e, principalmente, aqueles que, ausentes da possibilidade de comer a simplicidade do arroz, se contentavam em beber a água que havia fervido o arroz. Beber a água do arroz, para muitos, era a única refeição. Quantos milhões de indianos desprotegidos de chuvas, desalimentados do sustento básico?
Seguindo a saga do arroz, um menino sai para tentar a sorte entre cidades com um único saco de suprimento: um saco de arroz. Ele era contrabandista do estimado produto. Junto a outros meninos, viajava de trem para transportar a mercadoria. A polícia estava de vigília e prometia a apreensão do contrabando e dos jovens obrigados a trabalhar como única maneira de driblar a fome. Algo visto em transformações sociais que lembram também os entregadores que transportam marmitas, lanches a grandes distâncias, mas ao mesmo tempo são impedidos de comer. Os "contrabandistas", como chamados pela polícia, se amontoam em vagão com adultos, são desamparados pelas leis, por elas apenas perseguidos. Convivem com adultos, provocam e apanham de adultos, vivem à margem de entrar sem pagar passagem e tentar fugir pela estrada dos trilhos, mesmo que os salvadores trens também possam servir de algozes, ao tentar cortar distância entre vagões enquanto os mesmos estão em movimento: um desequilíbrio pode ser fatal. É a vida de caminhar sobre brasas, sobre lâminas de facas, fazer malabarismo com canivetes para sobreviver; um dia a mão escapa.
Continuação da saga indiana nas lentes, na direção de Mrinal Sen, que dessa vez não assina o roteiro, a cargo de Samaresh Basu, Manik Bandopadhaya e outros, Calcutá 71 é o retrato da época setentista, mas com advertência da frase que encerra/abre cada capítulo, em imagens do filme trazidas abaixo.
A nota final de Calcutá 71 repete Entrevista:
⭐⭐⭐⭐⭐
Interview (1970)
Filme da Índia, Interview é uma produção muito interessante. Traz imagens da época, de como era uma grande cidade indiana, no caso Calcutá. O personagem principal é um ator de verdade, o jovem adulto Ranjit Mallick. Ele vive com a mãe e com a irmã. O filme consiste na preparação de Mallick para a entrevista mais importante de sua vida, quando um tio lhe garantiu uma oportunidade de emprego. Tendo experiência com jornais, o jovem considera que a oportunidade estava no papo e que a entrevista seria apenas mera formalidade.
Em preto e branco, o filme lembra outros clássicos da época, produzidos, por exemplo, em França e Itália, os maiores vencedores de Oscar estrangeiros e de demais festivais na época. A direção e a assinatura de roteiro ficam a cargo de Mrinal Sen, diretor bengali que esteve vivo até recentemente, com sua morte ocorrida aos 95 anos.
Ao longo do dia, Ranjit Mallick passa por muitas peripécias, tendo em conta de que a missão que parecia simples, torna-se complexa. Desde atividades simples como fazer a barba e arrumar o cabelo até procurar seus amigos para conseguir terno e sapatos adequados, a principal tramoia do filme. A crítica social final é deveras válida, sobre como a sociedade capitalista, ainda mais no capitalismo tardio indiano, em meio a engatinhar pós superar a sugativa ocupação britânica, levava em conta a aparência acima das qualificações. A dificuldade para um jovem sair da vida extremamente simples de viver com a família em busca de um emprego em uma considerada importante multinacional - no começo do filme, o tio de Mallick afirma que os investimentos vinham da Escócia - também levantando a questão de até que ponto havia superação do domínio britânico.
O fluxo das vias, o trânsito desorganizado, os becos e pequenas ruas onde milhares de pessoas vivem, os bondes e os barbeiros abarrotados do vai e vem diário. A busca pela aparência correta, por um bom nó de gravata, por um terno sob medida - visto que o do pai de Mallick não lhe servia, o pai tinha muita pança e sobravam as calças.
Mallick se envolve na denúncia de um pequeno assaltante em um bonde e acompanha as testemunhas até a delegacia. Nisso precisa registrar rapidamente a queixa e ter tempo de realizar a entrevista na pontualidade das três da tarde. O terno torna-se o grande problema, pois o aspirante ao emprego esqueceu-o no vagão. Como recuperar o tecido perdido? Telefonar para quem? Quem poderá lhe socorrer?
Em instantes no filme, nas técnicas também ensaiadas no cinema europeu, Mallick rompe a parede, como é dita a expressão, e conversa com o público. São momentos interessantes de críticas sociais e questões suscitadas para audiência, convocada a participar. É o primeiro de uma série de alguns filmes recuperados de Mrinal Sen para assistir nos próximos dias. Sem promessas, novas críticas podem ser apresentadas na desbravação do cinema do agora país mais populoso do mundo, ao recentemente superar a China.
Nota final para o filme Entrevista, dos bengalis:
⭐⭐⭐⭐⭐
30/06/2025
Huo Zhe (1994)
Filme chinês dirigido por Zhang Yimou. O título em inglês ficaria To Live. Em português, Tempo de Viver. É uma obra complexa em suas 2 horas e 12 minutos.
O personagem principal é Fughi (You Ge) e inicia com a trajetória nos anos 1940, tempo da Segunda Guerra, com o exército a recrutar combatentes contra os japoneses. Fughi é um jovem pai de família, pouco dedicado à esposa Jiazhen (Gong Li) e à sua pequena filha e, nas dificuldades de obter renda e sustento, é viciado em jogos de azar: jogo de dados. Ele aposta em demasia mesmo que a esposa o alertasse. Acaba por perder a casa onde vivem, propriedade que era de seu pai, então ainda vivo. Abatido, adoentado com a desgraça da perda, o pai ainda o condena pelas palavras, sofre um ataque e cai morto. É apenas o início do drama. Em seguida, Fughi precisa ir para frente de guerra, em meio à neve do inverno e com outros combatentes. Aprende os extremos da vida, vê batalhões inteiros serem dizimados.
Capturado pelos japoneses, sua arte em lidar com fantoches chineses entretém os guerrilheiros adversários, que poupam sua vida. Ele finalmente conseguirá voltar para casa. No tempo em que esteve fora, enquanto sua esposa se desdobrava para manter a família, sua filha teve uma doença grave, com a qual infectou a garganta e perdeu a voz. Seu filho pequeno, com o qual a mulher ameaçava abandonar Fughi, já está caminhando. Uma reviravolta é quando o apostador de dados que herdara a casa de Fughi é acusado por conter a propriedade privada diante do novo regime, da revolução chinesa que colocou Mao no poder. Se não tivesse perdido a casa nas apostas, Fughi igualmente perderia a propriedade para a requisição do Estado. Sem entregar a casa, o apostador foi condenado a ser baleado.
O filme transpassa as décadas e traz temáticas comuns à vida chinesa. O desenvolvimento comunitário, as restrições e regulamentos do regime comunista, a expansão econômica através da demasiada produção de aço; o trabalho infantil denotado disso. O drama familiar de encarar a adversidade aos filhos, o machismo que delegava às mulheres uma posição submissa e de casamentos arranjados; uma sociedade que migrava do predomínio agrário ao industrial; o vício nos jogos de azar, prática comum também ao mundo ocidental. A dificuldade para manter um relacionamento diante desse vício; a travessia de gerações, desde a morte do pai de Fughi até o desenvolvimento de seus descendentes.
O drama é bastante forte em algumas partes do filme. O humor é escasso. A base do filme é o desenvolvimento de situações adversas para serem superadas, agoniadas, vividas e talvez vencidas por Fughi e sua esposa. Drama familiar que acompanha o desenvolvimento, as controvérsias do regime chinês. Não é uma crítica grosseira, escrachada, traz sutilezas, suscita dúvidas, amplia debates, se inscreve nas diretrizes do que o povo chinês passou e pode passar, com bons e mau momentos, alternados como a vida. Da alimentação básica à necessidade de regulamentações no trabalho, de que a expansão não pode ser a qualquer custo, ao custo de vidas humanas, da necessidade de que a saúde seja enxergada com mais prioridade, mais carinho e dedicação pelo governo.
Apesar de lançado em 1994, passados 30 anos, o filme chinês ainda abre e reabre debates sobre ideologias políticas, erros e acertos, repercussões que podem ser feitas abertamente onde não haja restrição da possibilidade de críticas: e no Brasil há possibilidades, tanto que aqui são publicadas essas análises. Analisar que o Brasil não possui liberdade de expressão, ou que ela esteja ameaçada e controlada nas redes, é um equívoco interpretado por quem defende, provavelmente, quem se beneficia pela propagação de mentiras e difamações criminosas. A regulação é contra crimes contra outrem, não para restringir o uso da opinião; é para criminalizar crimes de ódio e leso a minorias sociais e indivíduos, não para encerrar debates e possibilidade de oposição. Para quem tenha dúvida sobre a impossibilidade de oposição, que assista aos momentos deste filme em que Mao não pode ser criticado, que o regime não possa ser duvidado ou rebatido, com a pena prevista até a morte ou a prisão definitiva. Isso sim caracteriza restrições máximas dignas ao caráter de ditadura. Esta semana também foi tempo de conferir um novo filme brasileiro sobre a ditadura militar (1964-1985), chamado A Batalha da Rua Maria Antônia, em que a polícia militar certa prédio e combate estudantes universitários e secundaristas durante o ano de 1968, na capital São Paulo. São exemplos de episódios ditatoriais, diferente do que alegam sobre a história recente em regulação de redes sociais no Brasil.
26/06/2025
Inverno Litoral
As ruas no inverno enrugadas
E as folhas desfraldadas
Pelas calçadas
E os esgotos na cidade ninguém conserta
E pelas ruas um carro não dá a seta
E a cidade assim tão deserta
A umidade, a pista molhada
As dunas crescem sem adversário
A fauna hiberna escondida
Só surgirá quando estiver esquecida
Dias cinzas, guarda-chuvas duplos
A tarde vai vestida de luto
Amiga é um café, um café, um suco
A marca da roupa, o preço, insulto
As marquises, guarda-chuvas, tumulto
No inverno quase zero movimento
Ruas vão mal iluminadas
Asfalto esburacou pro porto
Lá é caminhão a torto e a direito
Containers contém os IOS
A preços que o pobre não merece
Que o rico taxa
Não paga e se esquece
As ondas da maré que abocanha
A duna que é o abrigo dazaranha
O som que não falha hasta mañana
O som que não falha hasta mañana
25/06/2025
Adeus, Pai (1996)
Sigo rendido ao cinema de Portugal. Um pouco surpreso, um pouco não, porque um país com tantos conflitos, contradições históricas e sanguíneas, formado e influenciado por diferentes povos deve ter o que contar. O diretor Luis Filipe Rocha provavelmente investe no autobiográfico para contar a história do pequeno Filipe, que sente o pai ausente e, somente aos 13 anos, corre atrás do tempo perdido com seu progenitor. Na verdade, o pai sente que tem um filho e por isso tira férias do escritório de advocacia e ministra um tempo com Filipe em uma viagem especial para o arquipélago dos Açores, região com entre 200 e 300 mil habitantes, conhecida por simplicidade, destino para vacaciones e belas paisagens. Arquipélago que resultou em muitas navegações e colonizações passadas.
Tema presente para Portugal, a relação com as colônias africanas também é abordada. É um motorista que de lá veio. Há também um cadeirante que na guerra foi salvo por um africano, após ter matado muitos nativos. O africano que salvou o cadeirante, conduzindo-o por dois dias em seus esforçados ombros até o acampamento mais próximo, pediu para que o deficiente nem lhe agradecesse. Pois o ferimento e a lástima pelo que havia feito no território o acompanhariam para sempre. E assim ele segue a contar essa passagem para todos que o conhecem. Sujeito que dessa forma ganhou o apelido de Rodinhas. "Dito isso, alguém quer pagar uma cerveja ao Rodinhas aqui?"
Filipe apaixona-se por uma violinista um pouco mais velha, chamada Joana. O irmão de Joana logo percebe, tendo 14 anos e nenhum pudor, o irmão da rapariga passa a ensinar conselhos amorosos ao garoto, enchendo-lhe de ideias novas, desde masturbação a tentar entender a cabeça das mulheres. Assim desenvolvido no assunto que lhe faltava com o pai, Filipe passa a conversar com o velho sobre esses temas, causando embaraço, constrangimento, mas também divina aproximação. Ele entende o conflito de sua geração. O pai trabalhava no escritório do sogro e se encantou pela que seria a mãe de Filipe. O menino já entendia como funcionava o processo. Com a filha grávida do mero estagiário, o avô de Filipe não queria ganhar o neto. A moça contrariou a decisão e resolveu ter o bebê: assim nasceu o protagonista Filipe, filho de um estagiário em advocacia e da filha do responsável pelo escritório.
Em diálogos duros e frios, o pai explica a Filipe que na época preferia não tê-lo, que sentia que filhos prendem as decisões da vida. Tudo é abordado de uma forma de tamanha crueza. O menino, porém, reage bem e o aprendizado faz parte de seu desenvolvimento, cativando também muita empatia por parte do público.
O filme com foco no amadurecimento traz Filipe diante de seu primeiro amor, vindo à primeira vista. O aprendizado que ele tem com um adolescente mais velho do que ele, o safado irmão de Joana. A comparação com outras histórias: a proprietária da casa que alugaram havia perdido o pai, marinheiro, quando ela tinha apenas três anos - de nada lembrava, embora guardasse quadro, pintura e boas impressões do misterioso homem o qual a gerou. Já o pai da adolescente Joana tinha se apaixonado por outra mulher nos Estados Unidos e deixou os filhos. Filipe passa a perceber que sua história não era perfeita, mas a das pessoas à sua volta muito menos, tampouco. Por que não dar nova chance a quem ainda estava com ele? Como escolher entre a família próxima, com sua mãe e sua avó com que ele morava ainda em Lisboa, e o repentino e fortificado amor sentido em relação a Joana? As escolhas e renúncias são tema crucial no filme de Luis Filipe Rocha.
Um Portugal que também amadurecia, agora em corner da Europa, sem impérios além-mar, reflexivo sobre os Açores, cercado de água, limitado por terra pela Espanha. Um Portugal com seus escritórios onde percorrem dinheiro dos ouros que de Brasis levaram, mas com novos filhos para criar, meio a novos africanos, velhas paisagens, velhas histórias, novas impressões. Outra vez rendido ao cinema português.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐⭐
14/06/2025
Notas sobre Fernanda Young
Descobri a Ana Amaral, Fernanda Young no documentário recente (2024) sobre sua vida, roteirista, escritora que se almejava e considerava assim desde antes da alfabetização. Criativa, rebelde, reconhecendo em si a crítica de que poderia ser egocêntrica, mas quem não é? Lidar de frente com isso é honesto e a palavra que marca sua trajetória: coragem.
Coragem não exclui o medo. Só não sente o medo quem está totalmente medicado, drogado ou já é louco de pedra. Nós com discernimento não somos assim. Fernanda era corajosa.
Viveu entre Niterói e Rio de Janeiro, realidades que ela postulou como próximas e distantes. Aponto palavras e termos que ela própria usou, como autobiográfico. Acho interessante assim, porque rotular os demais é perigoso e quase sempre um tanto injusto. Lamento ou não pelas vezes em que faço isso e também somos vítimas.
O documentário traz passagens frasais de sua vida e história. Dá vontade de conhecer mais de sua obra. Até a inspiração desde os desenhos mais ou menos toscos que fazia, pois ela destaca: os desenhos vêm (na vida das pessoas) antes da palavra escrita. Isso é bem verdade. Seja na história da humanidade, das pinturas em cavernas, ou na vida dos bebês, das crianças, que antes podem desenhar ou reconhecer desenhos do que escrever o próprio nome.
A relação dela com a procura de definições e situações para o amor é tema de autores, músicos, escritores, artistas que veneramos. Em certa altura ela questiona se do vazio enquanto não se ama brotam sentimentos negativos. E não é assim que vivemos e passamos o tempo amargurado em sociedade? Nos preocupando e enchendo-nos de distâncias, ânsias e repúdios; repugnar.
Ela almejou por um tempo de diversão em que não houvesse reticências. E concluiu sobre a liberdade e a cura. De um coração quebrado, a cura é enxergar que não mais se espera pela perfeição que nem existe.
Entre a idealização social da noiva vestida, se deseja na verdade a nudez. Abaixo das maquiagens, das fotos, dos sorrisos falsos, há um ser muito mais complexo. A liberdade é se desprender da imagem que a sociedade impõe. Fernanda enxergou isto.
12/06/2025
Primeiros filmes de Kiarostami + Clerks (1994)
09/06/2025
Todo Modo (1976)
Com elenco recheado de estrelas do cinema italiano, o longa (2h05) Todo Modo, com direção de Elio Petri, conta os entrelaços de igreja e política na Itália. De forma humorada e exagerada, a tensão ora cresce, ora se dissipa quando figurões da política e da religião Católica se encontram em exercícios de fé, em uma espécie de retiro, distante dos holofotes dos jornais e das grandes cidades italianas.
Após a queda do Fascismo com a derrota na Segunda Guerra Mundial, a Itália passou a ter dois partidos de maior força, um mais progressivista e outro mais conservador, sob a doutrina e a asa da Igreja Católica. Sem usar nomes oficiais sequer para identificar qual seria o Partido do filme, a ligação é evidente. Quando mencionam durante todo o filme sobre afirmados 30 anos de poder, é ao conservador que se referem. Justamente o tempo entre a queda da Segunda Guerra e a realização do filme de Petri.
Os velhos brancos, engravatados e de terno se reúnem em um fim de semana para rezas, mas também, cada qual tramando em seu quarto, para um perigoso jogo de gato e rato em acerto de contas. Dom Gaetano é o padre principal que organiza o cronograma e as realizações cristãs do encontro. Logo ao começo uma cena entre ele e o dito Presidente (provavelmente mencionado assim por dirigir o Partido) dá indícios de uma relação homossexual entre ambos. O filme é repleto de sátiras.
Os políticos e religiosos lavam as mãos nesses encontros. O Partido é tomado por donos de empresas, banqueiros, empresários e influenciadores do sub-mundo financeiro. Do meio para o fim da história aparecem, também de forma satírica, uma verdadeira salada de siglas para tentar compreender quais empresas estariam envolvidas e na reta dos escândalos. A tensão passou a tomar conta quando ocorre a primeira morte. Um investigador é contratado para entrar em cena, enquanto o escândalo ainda é abafado das famílias, dos populares e dos jornais.
Tão logo chega o investidor, os homens de terno demonstram seus temores, suas inseguranças, no velho ditado de quem não deve, não teme. Mas como ali estão figurões dos mais corruptos da Europa, o aspecto de máfia se sobressai e o pânico se instaura. A crítica proposta é conhecida pelos problemas de corrupção que a Itália sempre atravessou, além de burocracias e nepotismos, heranças que parece terem sido bem transportadas com os imigrantes ao nosso Brasil. O nepotismo aparece com maior força em cena para o final do filme, quando cobranças de esquemas vêm à tona e ninguém mais mantém a calma durante o alarido das investigações e consequências.
A ligação entre igreja e política denuncia tanto uma instituição quanto a outra, a do Partido. O próprio Dom Gaetano afirma que se a Igreja Católica logrou êxito nos últimos séculos foi mais por competência dos padres ruins do que dos bons. O suficiente para bom entendedor.
Além dos escândalos financeiros e da possível tentativa de eliminar denunciantes ou opositores, ainda percorrem o filme os escândalos sexuais, outro tormento para as instituições lidarem e se protegerem das investigações e da opinião pública. O comentário sobre o filme vem em imaculado momento, pois recém divulgaram-se os dados sobre as religiões em território do Brasil, com o catolicismo ainda sobressaindo na casa dos 56% das pessoas, queda em relação a outras pesquisas, mas o suficiente para manter vantagem sobre o crescimento dos evangélicos, já representantes de pelo menos um quarto da população brasileira. Os sem religião representariam cerca de 10%.
A ligação entre Igreja e Estado (Política) no filme italiano denuncia as hipocrisias, farsas, inaptidões e desinteresse dos engravatados pelos reais problemas de sua população, enquanto miram lucro e boas relações interpessoais para vantagens exclusivas. Em um momento de crise, após o estopim dos problemas no encontro, alguns dos políticos discutem os problemas e se não seria vantagem então pular o muro rumo à oposição, pois os riscos de permanecer no Partido em crise eram evidentes.
Escândalos financeiros, interpessoais, acusações, falsidade, escândalos sexuais, tentativa de manter a ordem e as práticas de doutrina: tudo isso se encontra nas confusões reservadas ao filme Todo Modo, nome importante e que deve ser prestado atenção para descobre os enigmas que envolvem essas corruptas instituições mandatárias secularmente na maior parte da Europa, antes mesmo de unirem os fragmentos e a Itália ser Itália, visto que o país é relativamente novo, saindo dos impérios e denominações feudais rumo às fragilidades ditas democráticas.
Drama, comédia, suspense e até o terror dos cadáveres estão reservados em Todo Modo, um filme que desafia as instituições regulamentadas a exercer o poder, denuncia práticas obscuras sem citar nomes oficiais, apenas alguns símbolos, sem crucificar quem já não estivesse crucificado há quase dois mil anos do prazo de lançamento em 1976. Aventura sagrada e profana muito bem-vinda na exploração de diferentes temas.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐½
05/06/2025
Doente de si mesma + A Substância
30/05/2025
O avô de seu bisavô
O avô de seu bisavô era escravo.
Ou era senhor proprietário de escravos. Um escravocrata.
Ou era agressor. Bêbado.
Marinheiro ou portuário. Ou estava aprendendo as novas ferramentas. Sonhando com um novo mundo. Morrendo em um velho mundo.
O avô de seu bisavô era um europeu antissemita.
Era um racista ou talvez nunca tivesse visto um negro.
Ou veio ao Brasil de navio. Escravo. Ou era neto de quem veio ao Brasil. De navio. Escravo.
Ou se revoltou com as monarquias. Ou serviu as monarquias. Ou comprou escravos. Ou trabalhou com escravos. Ou teria direito a terras. Ou teria direito a nada.
O avô de seu bisavô talvez se achasse mais importante do que outros. Que teria mais direitos. Sobre as propriedades de terra. Sobre pessoas. Sobre a esposa arranjada. Sobre a esposa comprada. Sobre a venda da alma da filha. Para outra família. Que ele escolhesse.
O bisavô de seu bisavô talvez fosse angolano. Mas nem existia o país. Talvez fosse moçambicano. Mas nem existia o país. Talvez fosse camaronês. Mas nem existia o país. Talvez fosse ganês. Mas nem existia o país. Era de alguma aldeia ou de alguma etnia. Era de guerrear na própria África. Ou era da paz. Não mais.
O bisavô de seu bisavô era indígena. Ou trabalhou escravo ao lado de indígenas. Ou caçou indígenas. Ou lavou as mãos nos afluentes brasileiros.
O avô de seu bisavô te daria orgulho e resistência. Ou vergonha. Ou ele não te entenderia. Nem mais entenderia o mundo tão mais profundo. Será? Mas a maioria nem pensa nisso. Segue o fluxo e as leis vigentes. Mais uma geração de gente. Quantas mais? Quem será o último neto?
27/05/2025
Em uma rede social a sua foto de perfil estava tão bela que eu ampliei as partes do seu rosto até não haver distinção e contornos. Eram somente pixels. Nenhuma definição. Talvez sejamos assim, né? Apanhado de células, bactérias, ou só átomos misturados.
Será que é assim que se perde a razão? Se amplia tanto a pessoa que nada mais se enxerga? Contigo senti assim.
22/05/2025
Grande Liberdade + Noite de Sexta, Manhã de Sábado
Costumo considerar que sou agraciado ou desgraçado por mais coincidências do que a maioria das pessoas. Mas também sou mais observador, é bem verdade. Ao assistir filmes em sequência, coincidentemente estabeleço conexões entre eles.
Em Grande Liberdade, filme austríaco/alemão logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o cidadão Hans Hoffmann seguidamente é prisioneiro pelo crime do parágrafo 175: atos homossexuais. O filme traz uma perspectiva nova em relação ao que observo das histórias prisionais: a perspectiva do homossexual. Negligenciado e até temido por outros carcerários. Esculachado, corajoso. Há quem negue dividir celas como se ali se tratasse de um cometedor hediondo. Há quem se aproxime por experimentação ou jogos de sedução. Como funciona a mente do sujeito enquanto está de cárcere?
As costumeiras manobras para escapar da prisão em muitas películas, em Grande Liberdade tornam-se maneiras de driblar a fiscalização para namorar um pouco. Curtir uma noite. Dividir uma cela, enviar presentes. Seria o amor um crime? Hans Hoffmann desafia corações, tempo de cárcere, novos crimes dentro de um espaço já reservado aos criminosos. Encontrará ele o amor ou apenas aventuras obsessivas? E o quanto isso muda para nós prisioneiros do lado de fora? Homo ou heterossexuais?
O virtuoso Hans chega a preferir a prisão a estar preso fora das grades sem um grande amor. Dramático. Em Noite de Sexta, Manhã de Sábado, o diretor recifense Kleber Mendonça Filho, aclamado por Bacurau, Aquarius, Retratos Fantasmas e outros filmes voltados aos espaços e temas de suas origens, traz essa trama do curta centrada no casal Pedro e Dasha. Pedro está nas ruas do Recife em uma noite de sexta-feira, como condiz o nome. Dasha, no exterior, acorda pela madrugada, amanhecer de sábado. Pedro lamenta poder tê-la acordado com a ligação telefônica, após ser consumido pela solidão de uma festa.
Pedro circula a noite recifense, encontra um posto 24 horas para nova ligação. Os telefones celulares dos atores são arcaicos para pensar na nova era dos smartphones. Ligações de voz eram a tônica. Eles se encontram mesmo a milhares de quilômetros. Ouvir a voz um do outro, mergulhar pés nas areias de mar ou de rio, onde amanhece Pedro podendo ser assaltado no lusco-fusco do Recife, uma das capitais mais violentas do Brasil. Onde Dasha tenta relembrar com ele as ruas da capital cosmopolita onde está, e onde passaram algum tempo juntos, ao que tudo indica o labirinto de lembranças: as saudades.
Os atores apresentam sintonia. Sintonia que uma simples ligação de voz pode ou não oferecer. No inglês enferrujado e tímido de Pedro com a acostumada estrangeira Dasha, seja de onde Dasha for, com esse nome meio russo, com os 20 graus que ela afirma serem o verão de onde está. E o que importa realmente onde esteja? Importa a Pedro saber o telefone dela, com ela conversar. Os atrativos da era pré-smartphoneana. O prazer de encontrar uma sonhada mesma água, mesma areia, mesma vibe. Uma verdadeira mesma lua, mesmo sol, mesmas estrelas. Quantas vezes pensamos ver o mesmo que as pessoas que estão distantes? em outros fusos, inclusos.
Em Grande Liberdade, reunem os presos numa única cena mais para final, em que assistem ao televisor que exibe os primeiros passos do homem à lua. Cena que Hans esperava mais marcante, mais poética. Seu companheiro de cela queria alienígenas e tudo o mais. Quem saberia como era o universo naquela época das primeiras imagens transmitidas via satélite? Até hoje há quem duvide da Terra redonda e azul predominante dos mares.
Para Hans Hoffmann não interessava a distância para fora das grades ou até a Lua, se o amor se apresentava para ele em meio às ferrugens, nos pequenos intervalos para banho de sol pela vitamina D, em noites improvisadas após provocar os guardas com erros de contagem. Amor que custava o enfrentamento da cela solitária em represália de seu crime favorito. Ao Pedro, na liberdade da noite de Recife, mais valia pagar o alto preço da ligação internacional para Dasha do outro lado do mundo. E quem de nós solitários do mundo tem coragem e certeza e audácia para condenar? Condenar o amor entre as grades ou do outro lado do planeta azul. Ou onde for.
18/05/2025
Buena Vista Social Club
Pelas ruas de Havana
Eu me vou desde pequeno
Ou me disse uma cigana
Ou foi um outro moreno
Se não fosse Havana
Preferia fosse a morte
A Santiago de Cuba
O meu abraço mais forte
A Santiago de Cuba
Santiago de Rio Grande
A Santiago de Chile
Ou por onde mais deixei amante
Jamais deixei de amar-te
A arte dessa salsa
Jamais em alguma balsa
Jamais deixei de amar-te
Tú eres mi à la carte
Ao controle dos cartéis
E dos papéis das autoridades
Quero nos meus registros
O meu crime de amar-te
Quero anunciado em alto-falantes
Quero que conste nos autos
Os meus prantos de saudade
O meu crime de amar-te
Jamais deixei de amar-te
Pela arte dessa salsa
Jamais em alguma balsa
Jamais deixei de amar-te
Tú siempre mi à la carte
Te dedico o sol que me nasce
Te dedico as minhas preces
Mesmo que nada aconteça
Te dedico más de mil veces
Tus besos son lo que me vale
Por lo vale de la utopía
Te dedico o dia que me nasce
O amanhã e o mesmo de julho
Te dedico calendários
Aqueles que ainda nem penduro
A Santiago de Cuba
E toda sua luta
Buena Vista Social Club
Som que me faz permuta
15/05/2025
Há algumas espécies de filmes ou documentários baseados em homenagens preocupadas em serem feitas em vida, como se diz. E conforme se tornam filmes ou documentários mais antigos, assiste-se sabendo que os então homenageados em vida já morreram. E isto é bastante triste.
Nessa passagem chamada vida, encontrei em algumas pessoas negras a bondade e a humildade que não consegui discernir nos melhores brancos.
Visto o Buena Vista Social Club, sobre a música cubana, documentário do imprescindível Wim Wenders.
Tenho
Tenho
Problemas médicos de todas as ordens
E até os médicos desistiriam
Como uma criança além dos trilhos
Abandonada à própria sorte
Tenho
A companhia como uma úlcera
Algo que pulsa como um ser vivo
Tão nocivo
Tenho
A madrugada como o meu tempo
Um alento
Como se os outros tempos não existissem
Partissem
Tenho
A saúde perdida como um escambo
Time acoado jogando na Argentina
Sem mando
Sem brilhantina
Caminha
Tenho
Os capítulos enlatados de final
Tão fácil
Prever o mal que já não tem raiz
Tem galhos folhados
Me diz o que eu fiz
Se há outro lado
Que eu nado
Um refugiado do próprio corpo
Alado
Desabado
Fado
Tenho
E às vezes nem me lembro
O que mereço
O que agradeço
Gessos
Tenho
Metamorfose em último brilho
Martírio
Cílios sublinhados de lágrimas
Feitas em fábrica
Aguardando a última cartada
De nada
06/05/2025
Samba bossa qualquer fossa
Vão seus olhos
Vão-se as vozes
Doses
Alucinógenos
Me dá mais desse negócio
Há nada melhor
Ao redor
Do mundo
Profundos
Escudos de realidade
Nada desde la navidad
Nenhuma novidade
Nada
Tudo adia
Tudo ardia
Nada, minha poesia
Brasas
Tudo tudo engasga
Nem Lady Gaga no Rio
Nenhum outro arrepio
Nem um outro arrependimento
Nada mais se concretiza
No cimento dessa brisa
Nenhum outro tormento
Nenhuma outra coriza
Nada más pide prisa
Nenhum outro Uruguai
Paranoico vivo eu
Nem mais estoico
Nem mais heroico
Do que posso ser
O que posso querer?
Se não você
Se não você
Então você
Está...
Em qualquer outro lugar
Deixa pra lá
Deixa pra lá
Deixa aqui
A saudade vai continuar
Samba - bossa - qualquer fossa
Trincheira dessa guerra cheia
Chega fácil, chega míssil
Sem avisar
Explode, ninguém acode
Morde no ponto fraco
Morde forte sem suporte
Vou continuar
Samba - bossa - qualquer fossa
Qualquer banco de praça
No Uruguai cesta chamam canastra
Nenhuma carta vai me fechar
Ferida erguida de solidão
Dai-me os pontos
Dai-me tua mão
Vamos continuar
"Eu saúdo o milagre econômico, mas o que quero mostrar são as festas do bairro"
Em Chris Marker 🇨🇵 Sem Sol (1983), documentário a partir de anúncios que estavam em cartas escritas ao redor do mundo.
Um causo chamativo é de um casal de japoneses que foi até um ritual, um templo de adoração aos gatos. Nesse espaço, como se fosse um mural ou muro de homenagens aos bichanos, há esculturas de gatos brancos em algum material entre a cerâmica e a porcelana. São depositadas velas e orações. Após a curiosa manifestação, a explicação da ida do casal de idade avançada é emocionante. Sua gata não havia morrido, mas fugido de casa, sem paradeiro definido. Foram pedir benção e que ela seja protegida, para esta vida ou depois. Não sabem se está viva, mas quando morrer não saberão e não haverá quem ore por ela. É uma das súplicas mais pura possível em todo planeta. Chris Marker sempre sensível ao extremo, seja a cada animal selvagem que morra na seca da África, transformando savanas em desertos, ou para mostrar sorrisos islandeses naquela ilha tão distante, na cena de abertura do documentário.
05/05/2025
Frases do Dia
A memória não deve ser obrigação moral. Deixe que venha naturalmente.
Os feitos revolucionários são suprimidos para esconder a real força de um povo.
Após leitura de Espelho das Cidades, de Henri Pierre Jeudy e assistir a Pesadelo Perfumado, filme sobre as Filipinas, respectivamente.
02/05/2025
De Jueves a Domingo (2012)
Primeiro filme da chilena 🇨🇱 Dominga Sotomayor, uma diretora já conhecida por sua alta sensibilidade em dramas lentos. São mais lentos do que a maioria das pessoas tolera, o que confere status Cult. A pré-adolescente Lucía viaja com seus pais para um fim de semana estendido, perfeitamente como se fosse este em que escrevo, entre o 1⁰ de maio dos trabalhadores e o fim de semana.
Ela tem um irmão mais novo e consideravelmente pentelho, Manuel. Seus pais iniciam a viagem no que parece mais um fim de semana familiar qualquer. O filme mescla tons de comédia com o drama infantil, mas sobretudo perpassa uma nostalgia de nossas infâncias. A identificação criada com a película é muito por conta das viagens de carro que eu mesmo presenciei ao longo da vida. Meu pai mais descontraído ao volante, minha mãe mais preocupada ao lado dele, como Ana se preocupava superprotetora ao filho Manuel. Minha irmã sendo mais velha, eu o mais novo. Dominga prepara uma direção sensível no filme, onde as respostas sempre se apresentam nos detalhes e sutilezas para o atento espectador. Ou para própria Lucía, observadora das conversas adultas.
Lucía desvenda os mistérios daquela viagem. Percebe o clima de apreensão entre o casal. Uma carona às jovens de recém completados 18 anos, causando incômodo na imagem da mãe, que logo reforça seus cremes faciais. Uma acusação sobre a empregada roubar joias, uma conversa sobre alugar um apartamento. Uma lembrança de infância do pai sobre aquela região do Chile quando tinha 7 anos, mesma idade do pequeno Manuel.
Brincadeiras de um amadurecimento, de Lucía herdar um terreno há muito não visto, sobre sua curiosidade para aprender a dirigir. Uma menina curiosa que nota as mudanças de comportamento de seus pais. O pai que atola o carro num trecho de riacho. Recebe ajuda de outrem. A mãe que conversa ao pé de ouvido com um amigo com o qual se encontra na estrada. As crianças, Manuel e o filho do amigo, brincam à parte desses acontecimentos mais sérios. Mais velha, Lucía não passa despercebida pela guinada na história.
A tensão final em uma conversa que dá a entender que o amigo apenas consolaria a mãe chamada Ana. O findar do casal então não parecia assim definitivo. Ela se desespera ao saber que o marido já havia alugado um apartamento (com a intenção deixa-los? Ao menos assim interpretei). Desesperada pela informação bombástica, Ana começa a caminhar sem rumo, fugidia no deserto chileno. Para quem o drama considerar muita água e demasiado açúcar, lágrimas de nostalgia, se não brotadas, ao menos informadas pela fábrica de que poderiam, na meteorologia dos olhos, cair. Para quem achar muita água com açúcar, a distração com as paisagens chilenas de retirar o fôlego são uma pedida. Manuel insistia, inconsolado, pela praia, mas as montanhas, a estrada, o mato e o deserto estão de bom tamanho. Um drama de amadurecimento infantil em que nos vemos em Lucía, seja por lembrança de idade, perspicácia, aventura, reflexões. Uma afeição construída pela centrada diretora sensível, seja autobiográfico ou não, o que pouco nos interessa à essa altura, espelhada e espalhada a imagem com o toque da empatia.
Nota final: 4,5 / 5
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